A escada.
Todos os dias eram vazios para Reustafá. Não porque fossem de todo ruins, um desprazer. Mas a impecável rotina dos dias de sempre, lhe assegurava essa repetição ritualística. Era como se o dia fosse republicações da mesma notícia com variações mínimas apenas nos termos. Uma repetição automática e pantomímica. Os “bom dias”, os “olás”, as mesmas calçadas por onde caminhava, os semáforos, as pessoas estacionadas nas mesmas esquinas e as que rapidamente avançavam em direção ao consumo das horas.
Na hora do almoço, Reustafá gostava de ir até o parque central que ficava próximo ao seu trabalho e lá fazer a sua refeição. Sentava-se no banco diante do lago ladeado por dois pés de crisântemo campestre a lhe fazer camuflada companhia.
Da inseparável mochila, tirava um tapewear médio onde estava sua aveia; do menor, o pão de centeio. Bastava-lhe. O que queria mesmo era admirar as uniformes crispas da superfície do lago movimentando-se ordeiramente como se estivessem atendendo a um invisível chamado. Isso o acalmava e lhe dava confiança.
Após o trabalho, voltava para casa sempre pela rua Voltaire. Uma rua muito arborizada e tranquila. Essa rua desembocava em uma bifurcação: de um lado uma praça de pequena dimensão e do outro a rua do Portal. Do lado da praça, um pequeno boulevard conduzia até uma longa e larga escadaria margeada por um bem cuidado jardim. Reustafá contou 30 degraus. A sensação era que parecia ter mais de 1000. Nunca os escalou. Sempre que por ali passava, parava diante da escadaria e admirava sua estranha imponência harmoniosa.
Olhando para cima divisava um banco de madeira com ripas horizontais todo branco e solitário na maioria das vezes. Sentia uma enorme vontade de subir a escadaria e sentar-se àquele banco. Mas um sentimento de inexplicável constrangimento, detinha-o.
Observar o banco ser banhado pelo tom dourado do sol ao poente era uma experiência indefinível por palavras. Isso o embevecia. Em algumas oportunidades, essa cena era valorizada ainda mais pelo som distante de um oboé executando uma música que identificava como sendo Bnei Heichala.
Bnei... Bnei... ecoava em sua interioridade apaziguada do mundo que lhe era tão distante.
Um grupo de crianças em gritaria passou correndo por ele e o trouxe de volta a realidade — ou tirou-lhe dela.
Morava a poucas quadras dali. Sua casa era estilo grega toda branca e abobadada. Sistematicamente ao chegar em casa tomava um banho morno; vestia uma roupa de linho leve e preparava mais um prato de aveia com pão de centeio. Isso lhe supria satisfatoriamente. Sentava-se na varanda com piso de tábuas de madeira com uma xícara de chá de sálvia e aquietando mente e coração, ouvia ao longe o misterioso som do oboé a melodiar em ondas irresistíveis por oceanos da imaginação.
Era feriado nacional. O bairro estava vazio. Era como se quase todos os moradores tivessem saído para viajar. Sem ter para onde ir a não ser para onde seus enfastiados sentimentos o conduzisse, Reustafá pôs-se a caminhar pelas vielas do bairro até instintivamente se deparar com a escadaria. Diante dela conduziu o olhar até o banco... lá no topo. Eram 17h40 e o céu como que em oração, convidou os mais belos matizes a formarem gradientes em mesclas intangíveis entre o dourado e o préter do mais sutil violeta... comungando com seu mais solitário observador ausente de sua própria solidão. Bnei... Bnei... a melodia a soar e sua alma gigante mal cabia em seu frágil corpo.
Sem dar conta de si, lentamente deu o primeiro passo, e o segundo, e o terceiro... até parar no décimo segundo bem diante da residência onde morava o doce som do oboé.
Como uma reverência, a melodia saiu e o cumprimentou incentivando-o a continuar a subida. E assim o fez.
Nunca olhou para trás. Seus passos grudavam nos degraus como se tivessem ímãs. Era como se fossem os degraus que puxasse seus pés para dar os próximos passos.
Uma brisa suave e cálida tal qual par de mãos, puxava-o com ânimo; uma silenciosa revoada de pássaros cruzando em diagonal sua escalada, respeitou as frases do oboé.
Sem cansaço chegou ao topo. Instintivamente contou trinta e três degraus e mais um em fase terminal de construção. Olhou à sua direita e lá estava o banco alvo a reluzir a esplendorosa cromática do poente solar. Caminhou e nele sentou-se. À sua frente descortinou-se um vasto oceano dourado; um horizonte tão retilíneo quanto seus pensamentos. Tudo que observava poderia ser descrito. Somente a paz que sentia era indescritível.
Um sorriso de Monalisa tomou conta de seu semblante.
A noite avançava e com ela o fim do feriado. Os moradores do bairro retornavam e com eles a algazarra de suas viagens preenchiam de “nada” as vielas ziguezaguiantes.
De manhã cedo um grupo de funcionários encarregados da faxina local, depararam-se com um corpo enregelado sentado no alvo banco segurando em suas mãos um oboé.
— Pobre Reustafá... era um músico tão talentoso que desperdiçou sua vida na tristeza de sua solidão — comentavam os funcionários. O que será que veio fazer aqui, sentado a noite toda diante desse terreno baldio?