Eu, um garoto bobo

Meu pai nunca me deu um carrinho. Mas ao meu irmão ele dava aos montes. E não era apenas em seu aniversário. Qualquer data. E também não fazia segredo. Ele chegava em casa, corria à sala, encontrava nós dois, eu e o meu irmão, mas sempre só este último ficava alegre. E eu saía de fininho e ia me esconder para chorar. Eu sempre ficava triste quando o pai chegava do trabalho.

Certa vez eu perguntei à mãe por que o pai era assim. E a mãe, uma mulher de não fazer cerimonias, respirou fundo e metralhou-me de uma vez. Talvez ela tenha sido um pouco severa. Talvez não tenha refletido. Mas, como eu disse, ela não era de fazer cerimonias.

— Seu pai não gostava muito da ideia de ter um segundo filho.

Gostava?

— Não, ele ainda não gosta. Ele não gosta de mim, né, mãe?

A mãe se calou. E eu soube na hora que tinha razão. Na verdade, creio que eu sempre soube, só não gostava muito disso.

— Tem como eu fazer alguma coisa?

A mãe pensou.

— Não sei, filho — Calou-se mais uma vez. Depois completou. — Não é melhor deixar quieto?

Não, não era. Mas eu não disse isso à mãe. Apenas assenti com a cabeça e saí.

Naquela mesma hora eu corri à cozinha e preparei um delicioso café. Também passei manteiga num pão — o pão era do dia anterior, ou de um dia antes dele, mas preparei com tanto gosto que acreditei servir. Depois coloquei tudo o que havia feito num prato e pus sobre a mesa. Olhei no velho relógio de pulso e vi que faltavam dez minutos para o pai chegar. Corri para a porta e esperei. Quando a maçaneta começou a girar, arrematei toda minha empreitada com um grande sorriso inocente.

— Oi, pai, como foi o trabalho hoje?

— Bom — E deu um passo, tentando se desviar de mim. Eu fiz que não percebi.

— Eu preparei café e pão com manteiga. Não está com fome?

— Você devia saber que eu nunca como na hora em que chego — Dessa vez conseguiu se escapar. — Onde está seu irmão?

Quando me deu as costas, vi que trazia uma sacola pendurada em uma das mãos; escondi–a.

— Aqui estou eu, pai.

O felizardo apareceu. E eu vi toda a cena.

Primeiro o pai abraçou e beijou o filho na testa. Depois estendeu-lhe uma sacola de uma loja chique. Quando o menino abriu, deparou-se com uma caixa do tamanho de uma das caixas das sandalhas da mãe. Havia uma base em papelão mas a maioria dela era em plástico transparente. E foi por esse plástico que eu vi a miniatura perfeita de um Golf prata, um dos antigos.

Meu irmão agradeceu mas não fora sincero. Nem sua alegria também fora. Mas o pai nem percebeu e ficou por ai mesmo.

Minutos depois eu estava na cozinha, pensativo. Estava sentado em frente o café e o pão com manteiga. Por minha cabeça passavam-se tantas coisas distintas que eu nem as podia discernir. Eram todas estranhas. E havia sentimentos também. Tristeza e outros mais específicos.

Então eu decidi fugir. Foi muito de repente e eu nem tive tempo de ponderar nada. Aliás, eu não quis ponderar nada. Só quis fugir. E não levei coisa alguma comigo, senão a roupa do corpo e os meus sentimentos.

Também não me despedi. E seria até incoerente se o fizesse. Quem foge não se despede. Mas confesso que queria dizer algo à mãe. Talvez apenas tchau. Aliás, adeus. Fechei a porta e saí, tonto, enjoado, triste.

Antes de ultrapassar o portão, entretanto, perguntei-me para onde iria. Pergunta difícil, e não obtive resposta. Nesse momento me senti um covarde. Eu queria fugir, queria fugir do pai e do irmão, mas eu era uma mera criança. Talvez uma criança boba, por sinal.

Mas foi então que um impulso me sobreveio às pernas e eu acelerei rumo ao outro lado da rua. Dalí, quem sabe, eu conseguisse encontrar um caminho.

Mas não encontrei.

A minha tristeza fora grande o bastante para fechar os meus olhos. E sem ver nada — eu ainda estava no meio da rua —, apenas senti uma força enorme me atingir no lado esquerdo do meu corpo de criança boba. Fui arremessado dali a uns quatro metros. E ironicamente, meus olhos se abriram nos últimos segundos, e eu pude ver apenas o esboço de um carro prata partindo. Pareceu-me um Golf. Aliás, tenho certeza que o era. Sim, era um Golf prata, um dos antigos.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 23/08/2014
Reeditado em 21/09/2014
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