DINHEIRO DE SOBRA - PARTE 1
Ao lançar mão da pena e iniciar esta história que trago dentro de mim, impulsiva e efervescente, fico a imaginar uma melhor maneira de transmitir, aos que irão travar contato com ela, como seria o mundo em que vivemos, transformado pela visão que me apossa nesse momento. Inconcebível para certos tipos de mente e, ao mesmo tempo, perfeitamente factível a outros que, por isso, tornam-se o seu oposto, tal transformação traria como benefício muito mais prazer, muito maior felicidade. E o sofrimento seria coisa do passado. O contato com a realidade atual causa perplexidade a quem, como eu, espera com avidez e otimismo um mundo assim. A era de contendas, em que alcançar cinquenta anos de vida era considerado fato extraordinário, ficou há muito para trás, é verdade. Perecer pela espada, em um contato corpo a corpo, ou assolado pela peste endêmica eram exemplos tão comuns de morte como é hoje deixar esta vida acamado em um leito de hospital, embora exceções existam aos montes, indiscutivelmente. Por outro lado, ao vivenciar o panorama, vergonhoso e alarmante que desfila diante dos meus olhos incrédulos, a revolta interior e a indignação só não são maiores do que a ânsia de registrar no papel o que sinto e acredito.
O que o homem não faz pelo dinheiro! Ficam para trás, em segundo plano, o respeito ao próximo e a si mesmo. No momento em que me dedico a escrever estas linhas, chegam ao meu conhecimento, através da imprensa, que nunca deixa escapar a chance para um bom e lucrativo destaque, notícias de acontecimentos de arrepiar os cabelos dos nossos antepassados. São denúncias de um roubo aqui, um desvio de verbas ali e outro acolá. As somas relatadas são incalculáveis e os nomes dos envolvidos predominam com tal evidência na mídia, que eles se tornam, da noite para o dia, as figuras mais faladas nos quatro cantos do país. Se já eram conhecidos, tornam-se, daí em diante, famosos e, não é de se estranhar, respeitados. A forma como conseguiram o seu intento, sutil e infamante, dificilmente vem ao claro conhecimento da sociedade. Por serem pessoas de influência e ocuparem cargos de confiança e decisivos para a nação, são, digamos, poupados de uma investigação severa e exemplar, fruto da própria legislação, cheia de falhas.
A disparidade entre o mundo dos ricos e o mundo dos pobres chega a ser assustadora em muitas partes do planeta. Habitado por seres humanos. Feitos da mesma matéria. Vivendo sob o mesmo sol. É certo que diferenças vão sempre existir no terreno da inteligência e da criatividade, somadas às condições naturais de cada povo e local. Se não levássemos isto em consideração e situássemos o ser humano numa escala única, o dinheiro, como simples meio de troca – e ele, na verdade, não passa disto – perderia totalmente o seu valor intrínsico, pois não haveria nada a ser trocado. O homem já teria tudo, o que na verdade já ocorre, como sempre ocorreu.
Não sei se seria fácil ao caro leitor imaginar alguém nesta situação. Tentemos supor, então, uma pessoa no outro extremo do caso. Alcançou tal estado em sua existência que o dinheiro passou a não ser mais problema para ele. A fase de sua vida que mais interessa a esta narrativa ele a viveu na primeira metade do século vinte. Conheci os detalhes que me impressionaram sobremaneira, lendo sua auto biografia. O mundo que Jack Richards – era este o seu nome – tentou idealizar com sua magistral inteligência foge inteiramente aos padrões comuns de uma sociedade tal como a conhecemos. Numa bela manhã de domingo, no auge da primavera de 1936, Jack decidiu pensar no que tinha sido sua existência até aquele dia. Despertou mais cedo que de costume, sentindo-se cheio de energia e bem estar. Às vésperas de completar meio século de vida viu-se extremamente rico e totalmente despreocupado em relação a pro blemas de ordem financeira. Era, na verdade, um privilegiado. Sua fortuna, inimaginável e estupenda, encostara, naquele ano, na casa dos onze dígitos. Ou seja, de acordo com o último balanço, possuía, em bens, ações imobiliárias, participações nas 28 empresas do grupo a que pertencia, entre outros investimentos milionários, a cifra de 11 bilhões de dólares, os quais cresciam e se multiplicavam a cada movimento dos pulmões que fazia para respirar ou dos pés para caminhar.
Não saltou imediatamente da cama como sempre fazia, mas saboreou os minutos seguintes bafejado pelas primeiras investidas da brisa primaveril que, sem pedir permissão, invadia o aposento e fazia tremular o cortinado branco da janela. Nancy, a esposa, ainda dormia. De costas para ele. Com o rosto enfiado por baixo do travesseiro azul de espuma. Algumas mechas de sua comprida cabeleira loura descansavam sobre uma das mãos de Jack que gozava a textura de sua maciez. Ela despertou, como era de se esperar e, ao vê-lo e sentir suas carícias, retribuiu com um sorriso. Ante a surpresa de notá-lo ainda na cama, disse:
– Não me lembro da última vez que o vi ao meu lado ao acordar. Será que estou sonhando ou hoje é mesmo segunda-feira? – Sentou-se e olhou o relógio dourado que tinha no pulso.
– Hoje é mesmo segunda-feira, querida – disse Jack, beijando-lhe a testa. – Porém, diferente de todas as outras.
Levantou-se, pondo-se de pé com um movimento ligeiro e repentino.
– Pegue as crianças e arrume as malas, vamos viajar.
A mulher, entre surpresa e alegre, ao esboçar o gesto de que ia falar, foi interrompida pelo telefone que soou naquele momento. Ainda encarando Jack com seus grandes olhos verdes e sem levantar da cama, esticou o braço para alcançar o aparelho cinza sobre o criado mudo. Do outro lado da linha, Gregory, o presidente da GWC Mineradora, e um dos maiores fornecedores de algumas empresas de Jack. Ao passar ao marido o fone, a surpresa de Nancy foi ainda maior.
– Diga que estou ocupado, invente qualquer desculpa. Não quero falar com ninguém durante todo o dia de hoje.
Assim seria no decorrer das próximas horas. A cada ligação recebida, a criatividade de Nancy fazia-se atuante, rechaçando todas as tentativas de um contato com o esposo. Foi uma manhã singular. Barbeou-se e tomou banho com indizível pachorra, trocando a rotina do noticiário sagaz e preocupante pelo prazer de ouvir no rádio suas canções favoritas. Brincou com Bill, o filho caçula e, abraçado à mulher, foi com ela à venda, de onde trouxe pão e algumas fatias de queijo para o café. Na volta, atravessou a rua, distanciando-se do jornaleiro e da tentação imposta pelas manchetes inalteráveis.