o Restaurante de R$ 1,00
Feliz daquele que possui na vida opções a fim de torná-la menos monótona. Economicamente falando, ganha-se de um lado quando, de outro, não há opções. Ser obrigado a viver, a força de contingências, em uma região careira da cidade, se não quiser usar a sarjeta para abrigo e o céu para teto - e, além de tudo, rezar para o Criador impetrar uma grevezinha entre os trabalhadores de São Pedro, do departamento de produção de chuvas, trovoadas e frio intenso - pode fazer com que a grana encurte e outras necessidades clamem por direitos iguais.
Quando uma dessas necessidades tem a ver com o estômago, então a coisa pega. Os restaurantes populares espalhados pela cidade são, sem dúvida, o exemplo mais evidente do que o aperto é capaz. Contudo, se analisadas as razões de muitos comerem ali, qualquer primeira impressão perde o sentido.
Quem alguma vez teve a chance de saborear uma refeição num restaurante popular sairá convicto de uma verdade: isto deu certo. Por que deu certo? Não tenho predileções políticas, mas sei que o homem vive pelas ideias inteligentes que produz e, quando estas ideias vêm para benefício de milhões ou milhares, já valeu pelos milhões em cifras que o fizeram enriquecer, se o fez honestamente.
Imagina um filho de Deus ter que engordurar o estômago por não poder o único Real que possui lhe proporcionar uma refeição anti suicida. Vai daí a certeza de conseguir equilibrar o orçamento sem ter que morrer antes da hora. Levando em consideração a distância que o separa do paraíso alimentar, obviamente.
Vê-se de tudo em um restaurante popular, mas o centro da capital carioca seria a mescla atraente dos contrastes e uma fonte riquíssima de interação social, sem nada diminuir a outra, a dos nutrientes; há pouco o que criticar. Se houver, diria para aumentar o sorriso e a boa vontade dos funcionários, e são muitos, que trabalham no atendimento. Mas, entendo, é a força do hábito em lidar com o público que torna a atividade por vezes estressante e enfadonha; ainda assim,
procuram fazer o melhor.
Ver um homem de terno e gravata, ou um maltrapilho, e concluir, respectivamente, que um tem dinheiro e o outro não, seria julgar pela aparência. Muito mais difícil ainda é tentar entender, vendo-os no local com regularidade, o que leva o primeiro a fazê-lo e como consegue fazê-lo o segundo; conclusões apressadas não levam a um bom resultado. A região onde se situa o restaurante compreende a Central do Brasil - exatamente a Babilônia do Rio de Janeiro - estação rodoviária, terminal ferroviário e estação de metrô de frente para o rolamento de quatro pistas de uma conturbada avenida. Dá então para fazer ideia do rebuliço.
Ambos, o homem de terno e o maltrapilho que é, neste caso, uma mulher, comem, despreocupados, as suas refeições.
- Moço, o senhor não se incomoda de me ajudar com um Real para pagar a minha refeição?
- Pelo que estou vendo a senhora já come a sua refeição. Então, isto quer dizer que já pagou por ela.
O homem mantinha-se sério, mal encarando a mulher. Pela forma seca com que falou não era lá amigo de esmolas. Na verdade, sentiu-se trapaceado ou convidado a manter uma vadia.
- O senhor sabe como é, doutor; é preciso garantir o de amanhã, não é? A fome não pode esperar.
Desta vez, sua seriedade dissipou-se, chegou a esboçar um quase sorriso.
- Entendo. Mas, por que não trabalha? Vejo que não é inútil. Dinheiro não é coisa que se ande pedindo, é preciso trabalhar para conquistá -lo. Não se envergonha? - Ele voltou a ficar sério.
- Não fale assim não, moço! O senhor não conhece um tico do meu passado.
- Não preciso conhecer o seu passado; já estou vendo você. O que fez para chegar a esse estado?
A criatura sentiu-se como que chocada com esta reprimenda tão rara e oportuna que seus olhos se umedeceram. Ela, por instantes, parou de comer e fitou o homem; pôs-se pensativa. Foi, no entanto, uma cena tão rápida quanto marcante. Fê-la retomar sua expressão e humor habituais. O homem expressou um gesto ligeiro de dor e arrependimento e voltou a quase sorrir e a comer silencioso para, novamente, ser interrompido por ela.
- Desculpe-me, mas o que faz o cavalheiro vir almoçar neste restaurante?
Ele nada respondeu. Continuaram em silêncio a refeição. Ao final, para surpresa da mulher, ele tirou do bolso uma moeda e deu-lha. A cena do encontro voltou a se repetir outras vezes, passando a mulher a ter garantida sua refeição diária. Não diria que ficaram exatamente amigos dada a grande diferença que os separava. Mas, ela se esforçava de alguma forma para que o não envergonhasse com sua aparência. Satisfeita a necessidade da alimentação, conseguiu roupas; vestida decentemente, deixou de ser repelida. Era alguém, mas um alguém ainda sem teto e sem trabalho.
- Estou surpreso com sua transformação; o que tem feito? - perguntou ele um dia.
-Tudo que pode fazer uma mulher sem teto e sem dinheiro - respondeu sorridente.
- Mas, está outra. A fisionomia também está bem melhor; onde tem dormido?
- Deixa pra lá. Estou curiosa com o senhor. O que faz num restaurante de 1 Real? Com esta vestimenta, esta aparência de magnata. Estou certo de que não é por causa do preço; isto eu garanto ...
- Lá vem você de novo com a mesma conversa. Já olhou a sua volta? Não sou o único que usa terno aqui.
- Moço, eu frequento isso aqui desde que foi inaugurado. Sou capaz de descrever a vida de cada pessoa enquanto almoça e, vou dizer, erro muito pouco.
- Então, já está respondida a sua pergunta; fale da minha vida.
- Aí é que está, não consigo, no seu caso. Mas, garanto que aí tem coisa!
- Quer me conhecer?
- Ué! Já não nos conhecemos?
- Você sabe do que estou falando; quer conhecer minha vida?
- Não perderia, por nada, esta oportunidade.
Daquele dia em diante o almoço de Diana, a mulher em questão, passou a ser na residência de Pacheco, dr. Silvio Pacheco, diretor de próspera rede de escritórios no ramo imobiliário da cidade. A mansão suntuosa, repleta de empregados, dentre eles Diana, dava ideia do seu poder econômico. A mulher mudou de vida.
A percepção de que aquele homem transformaria o seu padrão de vida se fez acertada. Soube agir, embora não tenha aberto o jogo, de jeito a penetrar na vida do dr. Pacheco por que previra que disto resultaria o seu bom futuro. Quanto ao advogado, comer em restaurantes populares de 1 Real é não mais do que um dos muitos exemplos de sua sovinice.
Na forma de tratar os empregados, com a própria esposa, no trabalho e na vida em geral, economicamente falando, foi o que o fez enriquecer. Se é feliz ou não, a quem cabe julgá-lo? Poupar ou não poupar? Eis a questão; deve-se ou não juntar para o futuro? Mas, juntar para que, para que tipo de futuro?
Diana deixou a casa do dr. Pacheco muitos anos mais tarde, estabilizada financeiramente, tendo a garantia de uma aposentadoria e certa tranquilidade. Se tem ou não dinheiro guardado ela não diz, desconversa. Boa casa, boas roupas e um estilo de vida que não chega a causar inveja. Mas, os hábitos, não os deixou. Que o digam os companheiros antigos. Ela não chega a pagar para eles a refeição de 1 Real, mas compartilha, e com frequência, este beneficio indiscutível para uma boa parcela da sociedade. Pensando bem, não é má ideia economizar uns trocadinhos de vez em quando.