Os Errantes (1ª Ponte)
A primeira ponte que atravessamos nos levou de encontro com as almas daqueles que pela gula foram condenados. Havia um bosque pantanoso com enormes árvores repletas de frutos que esmoreciam aqueles que ansiavam come-los, pois de tão altas e lúbricas as árvores, tornavam se impossíveis de serem escaladas e seus frutos, porém amadurecidos, jamais caiam.
Por todos os lados se via pessoas excessivamente magras suplicando por comida, algumas até se arrastando aos nossos pés. Meu guia pediu para ignorá-las, no entanto ali haviam pessoas conhecidas como Clement Docker, o papa Calixto 3º e o não menos memorável “Nero” o quinto imperador de Roma, além de políticos, atores e outros menos populares.
A poucos metros dali havia um banquete repleto de comidas, guloseimas, salgados e bebidas. No entanto se encontrava ilhado por uma lama negra que mais parecia petróleo e qualquer um que com fome que ousasse atravessa-la, afundaria.
Eu e Azrael passamos pela lama sem ao menos melar-mos os pés, enquanto outras dezenas de pessoas fracassavam em suas tentativas. Olhando para cima se podiam ver enormes harpias sobrevoando todo o bosque esperando que alguém tombasse de fome.
Perguntei ao meu guia se todas essas almas poderiam sofrer uma segunda morte e ele me ressaltou: “Sim. É muito difícil obter a morte aqui, mas tudo que existe é alterável, tudo se desfaz e de certa forma se regenera. Estas almas que aqui vês, morrerão como ectoplasmas e ressurgirão como fogo. Se aqui, humilhavelmente eles sofrem passando fome por terem comido demais em vida, na forma de labareda eles agonizarão permanentemente. O que é bem pior do que viver aqui.
É como querer gritar de dor sem ter ar para respirar, é como querer dormir tendo apenas uma cama de espinhos para se deitar, é como ter sede e comer sal para saciá-la. Resumindo tudo, é o que há de pior dentre as piores coisas, é na verdade o último estágio do sofrimento.”
Deixando de lado este assunto, tivemos que desviar de nosso caminho pelo motivo de que mais adiante haviam pessoas se matando mutuamente praticando canibalismo, e se ali próximo chegássemos provavelmente seriamos vitimas daqueles atos, então seguimos à esquerda de nosso trajeto.
Um lugar esburacado onde habitava o silencio. Ali eu me sentia bem, não haviam gritos de dores nem qualquer outro zumbido. Caminhávamos tranquilamente até chegar-mos a uma caverna, nela haviam pessoas acorrentadas de cabeça para baixo, Azrael me contou que ali ficavam as mulheres grávidas, os reis, os primogênitos, os obesos e os que morriam entalados por comida.
Conforme andávamos, eles tentavam nos agarrar, um deles até chegou a segurar forte o meu braço e só consegui me soltar com a ajuda do meu guia. Arranhado e sangrando, meu braço parecia adormecido, até um pedaço de unha encontrei em minha ferida. Azrael cobriu o corte com uma faixa e assim seguimos até atravessar a extensa caverna.
Então subimos uma colina onde nela haviam belas flores que segundo Azrael, estas eram venenosas e ali estavam para servir de armadilha para os mau-aventurados que sem forças, enfraquecidos subiriam a colina se arrastando e ocasionalmente teriam algum tipo de contato com elas, se envenenando.
No entanto subimos cuidadosamente e lá do alto paramos para observar o bosque e seus atrativos. Dali, a vista parecia ser bem mais agradável, ocultava um pouco do sofrimento e da indecorosidade.
Perguntei ao meu guia, de que forma estas pessoas foram encaminhadas diretamente até aqui? E ele me disse: “eles cometeram um pecado demasiadamente, por isso estão onde estão. Estes são aqueles que você viu afundar em areias movediças. Eles foram selecionados antes de chegarem ao jazigo, lugar onde nos encontramos.”
Em pouco tempo descemos ao outro lado da colina onde havia um caminho rochoso e escuro, o qual meu guia ordenou-me a atravessá-lo de olhos fechados e que de hipótese alguma eu os abrissem.
Segurando a minha mão, ele falou: “apressa-te a passar.” E soando frio, o segui sem questionar. No caminho eu podia ouvir risadas e murmúrios, não sentia cheiro algum nem tão pouco os meus pés tocando no chão.
Quando Azrael me pediu para abrir os olhos, já estávamos diante da segunda ponte. Fui aconselhado à não olhar para trás e então fizemos a nossa segunda travessia.
...Continua em: Os Errantes - 2ª Ponte.