347-OS GÊMEOS -Irmão paga por crime que não cometeu

— Força, cumadre, que en-vem mais um!

Deitada na cama entre lençóis ensangüentados, a mulher já não dava de si, quase desmaiada de tanta dor. A parteira, velha, experiente e habilidosa, tendo aparado o primeiro bebê, prepara-se para acudir o segundo. Uma ajudante lida com o recém-nascido enquanto surge o segundo.

— São gêmeos, dona Maculada! Dois minininhos!

Um sorriso débil surge no rosto molhado de lágrimas e suor da jovem mãe. É a primeira e última vez...pensou.

Os gêmeos batizados de José e Joel cresceram fortes e, vitelinos que eram, idênticos a ponto de serem confundidos pela mãe. Severino, o pai, amarrou uma fita de São Bom Jesus no punho esquerdo de Joel, a fim de identificá-los.

Cresceram idênticos no físico mas muito diferentes no gênio. Aos cinco nos, já revelavam as diferenças de personalidade no comportamento diverso. José era arteiro e gostava de andar sem camisa. Joel era quieto e estava sempre de camisa, para não ser confundido com o irmão.

Seu Severino os viu crescer, atento às discrepâncias dos dois. Aos dez anos, Joel, o tranqüilo, ajudava no atendimento de balcão da pequena casa comercial do pai. José, o travesso, sempre sem camisa, vivia pelas ruas, brincando e fazendo artes de criança.

A mãe morreu, vítima de um surto de tifo, quando os garotos estavam com pouco mais de treze anos. Seu Severino não ficou viúvo por muito tempo. Casou-se com uma moça bonita com pouco mais de 20 nos. Ele tinha o dobro da idade dela.

José, o travesso, não gostou da madrasta e passou a hostilizá-la com pequenos desaforos, traquinagens de garoto. Rosinha ficava brava, tentava pegá-lo, mas ele, um azougue, não se deixava pegar. Então, passou a usar camisa idêntica à do irmão. A moça fazia confusão e algumas vezes bateu em Joel, o certinho, por engano.

Era uma morena formosa e fogosa. Não passou muito tempo, estava pondo chifres em Severino, que não se dava conta das escapadas da mulher. José, esperto e rueiro, sabia dos passos da segunda mãe.

— Rosinha tá traindo o pai. — Contou para o irmão, Joel, que não acreditou. Mas passou a observar a madrasta. A desconfiança aumentava a cada dia que passava.

Não querendo perturbar o pai nem viver naquela situação que lhe desagradava, quietamente, conforme seu temperamento determinava, Joel, o tranqüilo, abandonou a casa paterna, livrando-se da madrasta e do irmão. Saiu da casa e da cidade sem ninguém perceber. Ganhou o mundo e na pequena cidade de Itapatita ninguém tomou conhecimento do desaparecimento do rapaz.

Graças ao modo afável de tratar as pessoas, arranjou emprego, aprendeu a dirigir caminhões e obteve um bom emprego como motorista em empresa de transportes. Casou-se com Vilma, que estava grávida quando atropelou diversas pessoas à beira da rodovia, matando duas mulheres e um rapaz. Fugiu do local do atropelamento, e, pela segunda vez na vida, Joel sumiu no mundo.

José, o malandro, continuava vivendo em Itapatita. O pai quebrara e a casa comercial fora fechada.. Rosinha abandonou de vez o velho, amasiando-se definitivamente com o Dr. Aldrovando, advogado de porta de cadeia, atuante no fórum local.

Pai e filho continuavam morando juntos. José continuava solteiro, não trabalhava e vivia metido em “negócios” que se revelavam pequenas falcatruas, golpes menores nos moradores da cidade. Pedia constantemente dinheiro ao pai. Mas com os recursos esgotados, o pai não tinha muito com que ajudar o filho.

Vilma, mulher de Joel, o fugitivo, agora mãe, agüentou enquanto pôde com as parcas economias do marido. Chegou a hora em que a fome bateu em sua porta. Foi então que viajou para Itapatita, à procura do sogro, que não conhecia, em busca de ajuda. Fez isso apesar dos avisos do marido, que lhe proibira de procurar o pai ou o irmão, sob qualquer circunstância.

Mas ele não sabe o que é passar fome e frio, sem ter leite pro bebê nem um cobertor pra me esquentar. Sem saber onde ele tá, se sou casada ou viúva.

Encontrou Seu Severino, apresentou-se e apresentou-lhe o neto. Contou sua história e a do filho Joel, que não sabia se estava vivo ou morto. Mostrou os documentos, para provar o que dizia.

— Tá bem, minha filha, fica aqui com a gente. Temos pouco, mas onde come dois, come três.

Quem não gostou da entrada dessa estranha e do bebê na casa onde vivia às custas do pai, foi José, o fracassado.

Danou-se. Com essa dona em casa, o pai num vai me dar mais dinheiro. — concluiu, acertadamente, pois na primeira vez em que foi pedir dinheiro ao velho, teve a resposta que temia:

— Agora cê vai ter que arranjar um trabalho, um serviço. Temos que sustentar a Vilma e o Rafaelito. .

José, o malvado, tentou assediar a cunhada, no que foi repelido, aumentando sua raiva por ela. Passou a maltratá-la, bem como ao garoto. Além dos maus tratos e das brincadeiras cruéis com o sobrinho, enchia a cabeça do pai com histórias maldosas a respeito de Vilma. A vida da mulher virou um inferno.

Cuidando de criar dificuldades à cunhada e para tirar proveito próprio, roubou da viúva os documentos do irmão, que passou a usar para conseguir emprego. Sabia dirigir, mas não tinha carteira, desleixado que era. De posse dos documentos, empregou-se numa empresa de ônibus e passou a fazer transporte pela região.

A vida foi seguindo até que Rafaelito chegou à idade escolar e a mãe foi fazer a matrícula.. Deu por falta dos documentos do marido. Desconfiando do cunhado, e como não tinha nascido ontem, sorrateiramente, acabou recuperando os documentos e descobrindo o golpe do cunhado. Fez a matrícula do filho não se sabe usando de que artifício. Nada disse ao sogro, então decrépito e caduco.

Corria em Americana, interior de São Paulo, um processo contra Joel, o fugitivo, pelo atropelamento e morte das três pessoas na rodovia paulista. O processo estava engavetado, as diligências paralisadas, pois o criminoso jamais tinha sido encontrado. Até que o marido de uma das mulheres mortas descobre que Joel está empregado em Itapatita, no interior de Goiás.

Uma ordem de prisão foi expedida e chegou até Itapatita, contra Joel, o fugitivo, que, legalmente, estava trabalhando como motorista na cidade. Na realidade, José, o vigarista, que se apropriara dos documentos do irmão.

José, o usurpador, procurou o Dr. Aldrovando (ah! as voltas que o mundo dá...) para sua defesa, ao qual relatou todo o caso. O advogado visitou Vilma e contou-lhe todo o caso, esperando que ela confirmasse a confusão criada pelo cunhado. Mas ela, vendo que chegara a hora da vingança, ficou tranqüila e afirmou, sem titubear:

— Ele é mesmo o Joel, meu marido, pai do Rafaelito. Fugimos de S. Paulo porque ele atropelou umas pessoas na estrada e estava sendo procurado pela polícia.

José, gêmeo vitelino, arteiro quando criança, malandro na juventude, desmiolado e fracassado como homem-feito, larápio e usurpador, está preso numa penitenciária estadual paulista, cumprindo pena pelo crime cometido pelo irmão Joel, o tranqüilo.

ANTÔNIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 1O. DE JULHO DE 2005

CONTO # 347 DA SÉRIE MILITÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/08/2014
Código do texto: T4905995
Classificação de conteúdo: seguro