ALMA REBELDE
 
 
 
O som das batidas do carimbo invadiu a sala. Como em tantas outras manhãs, na mesa ao fundo da repartição, Amadeu abria uma pasta e examinava minuciosamente as páginas, antes de marcá-las com o pequeno objeto de madeira. Ao longo dos anos, nem toda aquela mesmice o levara a cogitar um novo emprego. Em nenhum outro lugar experimentara tamanha segurança. Ali, ele estava no controle, ainda que fosse apenas de um carimbo.

Naquele dia, no final do expediente, Gonçalves, chefe de Amadeu, disse que ele teria de permanecer no trabalho até mais tarde. Trouxe uma imensa pilha de processos empoeirados. Por um momento, Amadeu parecia ter sumido atrás da torre de papéis.  O chefe saiu apressado, e o silêncio tomou conta do recinto. 

Ao pegar a primeira pasta, no topo da pilha, Amadeu sentiu uma terrível coceira no nariz. Um tremor percorreu seu corpo. O som do espirro estratosférico ecoou pela sala enquanto uma espécie de fumaça deslizava por suas narinas. Ele levantou-se num pulo, arregalando os olhos: em segundos, a nuvem criara outra forma. Amadeu estava diante de si mesmo, em plena juventude. No entanto aquele jovem transparente — saído de seu nariz — tratou logo de explicar:

— Não, não, não e não! Eu não sou você, Amadeu.

Ainda perplexo, o homem com o carimbo nas mãos, mal conseguiu balbuciar:

— Não?

— Claro que não! Olha só pra você. Agora olha bem pra mim. Quanta diferença! Morar dentro de você tem sido um verdadeiro inferno. Finalmente consegui escapar desta prisão monótona.

Amadeu olhava para o espírito arrogante sem saber o que dizer, enquanto o vulto observava a rua pela janela.

— Quanta coisa boa pra se fazer neste mundo. Já perdi muito tempo. Vou embora. Fique aí com seu carimbo.

A alma rebelde atravessou a porta, e desapareceu. O homem quis gritar, mas o nó em sua garganta era muito mais forte. Depois do incidente — mantido em absoluto segredo —, ele se agarrou ao trabalho como se fosse o próprio ar. No começo, as batidas do carimbo eram tão vigorosas que todos estranharam a empolgação de Amadeu. Com o passar do tempo, já não havia tanta vibração, até que, abatido por uma profunda tristeza, ele mal conseguia erguer o objeto e deixá-lo suspenso no ar.

No final do ano, durante mais um serão em que Amadeu trabalhava sozinho, sua alma rebelde retornou, atravessando a mesma porta. Ao perceber a aproximação daquela presença etérea, o homem do carimbo esboçou um sorriso:

— Você voltou!

— O mundo lá fora é esquisito demais, Amadeu.

 
 
 
(*) IMAGEM: Google
 
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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 28/07/2014
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