331-O CARRO FANTASMA

Totó Perrepes se chamava Tomaz e o apelido lhe fora dado porque, sendo perhaps a única palavra que conhecia em inglês, aplicava-a aleatoriamente, sem saber seu significado. Tendo ouvido Mister Garfield usar diversas vezes, quando duvidara da capacidade do exímio mecânico em por em ordem o sistema hidramático de sua Bel-Air, adotou-a como mote.

— Perhaps...Eu duvidar que senhor consertar minha Bel-Air. Perhaps...

Totó não entendeu mas gostou da palavra. Perrepes. Adotou-a.Em vez de usar o “uai” , como todo bom mineiro, dizia “perrepes”.

Agora, bom mecânico, com certeza ele era. Não só consertara o Bel-Air de Mister Garfield, o primeiro carro hidramático que aparecera pela frente (e isto lá pelos idos de 1950) como sabia dos segredos mecânicos de qualquer marca e acompanhou, através dos anos, a evolução da mecânica dos automóveis. Por isso, sua oficina era a mais procurada pelos motoristas de São Roque da Serra e região. Estava abarrotada de carros e, não raro, caminhões eram encostados diante da oficina. Mas ele não os aceitava, pois não tinha espaço no galpão.

Totó Perrepes estava aborrecido com o conserto do Galaxie da Santa Casa que estava sendo reformado há mais de ano em sua oficina. A demora no adiantamento de dinheiro para a reforma do veículo atrasava os serviços. Totó não tinha muito capital e dependia dos adiantamentos para comprar peças, que, no caso, eram muito caras.

— Perrepes...Preciso de dinheiro para trocar duas portas. — Explicava ao diretor do hospital.

— Tá bom, seu Perrepes, na segunda-feira lhe mando o numerário.

Passou-se a segunda-feira, como, aliás, já tinham passado muitas segundas-feiras, sem o cumprimento da promessa. O carro estava empoeirado, os pneus arriados, semi-abandonado no fundo do galpão.

O Galaxie tinha história. Adquirido para o serviço funerário, foi, durante muitos anos, a peça importante dos enterros mais chiques da cidade: o carro ia à frente, em suave marcha e o cortejo acompanhava, solenemente. Só para defuntos ricos, pois o aluguel era exorbitante. Mas a vaidade humana gosta de se manifestar, principalmente nesses momentos de dor e de luto. Assim, o carrão cumpriu sua missão, até que a moda passou. Os velórios passaram a ser feitos nas câmaras mortuárias construídas à entrada do cemitério.

Deram uma função menos espetacular, porém, de maior mérito: passou a substituir a ambulância do hospital, nos chamados de urgência. O Galaxie já estava bem usado, precisando de um bom conserto, quando ocorreu o inusitado. Aconteceu ao trazer dona Custódia, em estado de coma, da Fazenda Cerrado Velho. A velhinha estava meio que deitada, meio que sentada no banco traseiro, quando Jeremias ouviu o estertor final. Olhou para trás, perdeu o controle da direção, saiu da estrada, desceu pelo pastinho e enfiou a dianteira do Galaxie no Corguinho da Jararaca.

— Filha da puta! — exclamou. Não se sabe se xingou a morta, o carro ou toda a situação. O certo é que o corpo da velhinha caiu sobre Jeremias, dificultando a saída do chofer.

O carro foi recolhido a um galpão da Santa Casa, onde ficou por algum tempo. Empoeirando-se, “caindo aos pedaços”, como se diz. E, segundo a lenda, sendo visitado pela última passageira, Dona Custódia, que morrera em seu interior.

— Ela aparece dentro do carro, toda sexta-feira. — Quem assegurava era o Tobias, enfermeiro antigo, que dava conta de tudo o que se passava no hospital.

Um novo diretor achou que o carro, mal-assombrado ou não, merecia ser recuperado.

— Leve o Galaxie para a oficina do Totó Perrepes. Diz pra ele fazer o possível e o impossível para restaurar o carrão. — Determinou a Jeremias.

Jeremias não teve dificuldade em levar o carro. Encheu os pneus, limpou o assento do motorista e a direção, deu na partida e o carro funcionou. Os estragos na grade dianteira, nas portas e na lataria não impediam o percurso até a oficina de Totó Perrepes.

Este carro precisa mesmo é ir pro cemitério. — pensou Jeremias, ao manobrar o carrão, entrando na oficina. que ficava no Largo da Saudade, bem defronte ao cemitério. O largo era apenas um descampado, de chão batido, que os garotos usavam para jogar bola

Certa manhã de sábado, Totó Perrepes se assustou, quando, ao examinar mais uma vez o carro negro, desmantelado, verificou que o carro havia sido empurrado cerca de um metro, na direção do portão principal. Pergunta daqui, pergunta dali, ninguém se acusou ou soube explicar o deslocamento do veículo. Na oficina apertada, o movimento era visível, pois atravancava a passagem entre os carros, e impedia a entrada de outros veículos. Com ajuda de alguns empregados, devolveu o carro ao seu lugar de costume.

O fato se repetiu na semana seguinte e numa terceira vez. Não havia explicação, pois o piso do galpão era cimentado, no nível, e não havia como rodar livre.

— Perrepes...parece coisa de assombração!

Na segunda-feira seguinte, foi ao hospital, com uma ameaça:

— Perrepes...Se a grana para terminar o conserto não sair, devolvo o carro como ele está.

— Tá bom, seu Perrepes. Até quinta, sem falta, lhe mando algum dinheiro.

Passou a quinta-feira sem o pagamento prometido. Na sexta-feira, eis de novo o Galaxie fora do lugar.

— Perrepes... Agora tá demais. Se continuar assim, ele vai sair daqui e entrar direto no cemitério. Amanhã mesmo devolvo este fantasma pra Santa Casa.

Não chegou a cumprir a promessa. Na manhã de sábado, ao chegar bem cedinho à oficina, encontrou o portão escancarado.

— Perrepes...A oficina foi roubada!

Entrou de chofre e logo percebeu o roubo.

— Perrepes...Levaram o Galaxie da Santa Casa! — Olhou por cima dos outros veículos. — Inda bem que foi só aquela lata velha...

Intrigado, observou os rastros dos pneus, que, saindo pela porta da frente da oficina, avançavam pelo campinho de futebol e iam na direção do cemitério, cujo pesado portão de ferro estava também aberto.

— Perrepes...Levaram o carro pra dentro do cemitério...Parece brincadeira...

Acompanhou as marcas, cemitério adentro, pela larga aléia central, em cuja terra macia via-se nitidamente que os pneus estavam carecas. O cemitério estava deserto naquela hora matutina. Totó sentiu um arrepio ao caminhar sozinho, no silêncio sepulcral, em busca do carro roubado. Viu-o a cerca de uns duzentos metros à frente.

Tendo desviado-se do caminho central, passando por sobre tumbas e túmulos, o enorme carro negro jazia estacionado sobre uma sepultura. Ainda com receio, mas obedecendo a uma força inexplicável, Totó aproximou-se e viu.

— Perrepes...Está em cima do túmulo de Dona Custódia! Perrepes!

Antonio Gobbo -

Belo Horizonte, 27-fev-2005 –

Conto # 331 da série milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/07/2014
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