325-A VISITA DO MONSENHOR-Narrativa Familiar

Corria o ano de 1944. Tinha então nove anos e pouco sabia das confusões que havia na família.

Em uma noite quente, mamãe havia saído para uma visita com Arthur, meu irmão. Estávamos apenas eu e papai na enorme casa. Eu lia um gibi na sala de visitas, parcamente iluminada por uma lâmpada de sessenta velas, quando se adentraram, sem bater, os tios Aristeu, Chiquinho e Alberto, que todos tratávamos de “tio Velho”.

— Cadê seu pai? Onde tá ele? — Foram logo perguntando. Todos tinham a fisionomia ameaçadora e tio Velho trazia um porrete curto.

Assustado, deixei o gibi sobre o sofá e corri para a sala de jantar, onde papai ouvia o rádio. Eram cerca de sete, sete e pouco da noite, pois ele escutava no rádio “A Voz do Brasil”, que era transmitida de sete às oito da noite.

Enquanto papai se levantava da cadeira, tio Chiquinho me ordenou:

— Fica lendo seu gibizinho lá na sala de fora. Temos que conversar sério com seu pai.

Voltei para a sala de visitas, mas não conseguia mais ler o gibi. Fiquei atento ao que discutiam. Sabia, por alto, que havia uma pendência entre os irmãos de mamãe sobre uma herança deixada por vovô, umas casinhas de aluguel, situadas pelos lados da Santa Casa.

Tio Velho não gostava de papai, seu cunhado. Canalizou contra ele a sua raiva bem como a dos outros dois irmãos, devido à questão da herança, embora meu pai nunca tivesse tomado posição com relação ao uso das “taperas de adobe”, como ele mesmo dizia.

Os tios falavam alto com papai que, de índole calma e, com certeza, por se sentir intimidado, pouco dizia ou apenas resmungava inaudíveis “sim”, “é isso mesmo”. Não consegui mais ler as aventuras dos heróis da história em quadrinhos. Levantei-me devagarzinho e me coloquei detrás da porta, ouvindo através dela e vendo sombras pelas frestas. A conversa agora já era discussão. Os três tios gritavam e vi quando Tio Velho levantou o porrete, para atacar papai.

Quase gritei. Ao mesmo tempo, ouvi fortes batidas na porta da entrada. Corri para atender. Era um padre, que me disse:

— Garoto, preciso conversar com seu pai. Fala que é o Monsenhor Felipe.

Corri para a sala onde meus tios ainda discutiam em voz alta com papai. Tio Velho, quando apareci na porta, escondeu o porrete mas papai continuava encolhido em sua cadeira.

— Papai, tem um padre aí na porta. Quer falar com o senhor. Disse que é o Monsenhor Felipe.

Os quatro homens saltaram e correram na direção da porta. Pareciam assustados com a chegada do padre. Corri atrás deles. Todos vimos quando o padre, saindo pelo portão da rua, acenou para nós, sorrindo, como se estivesse nos convidando a acompanhá-lo. Papai me tomou pela mão e seguiu na direção do portão. Pela pressa, sabia que estávamos fugindo dos tios. Quando o atravessamos e chegamos até a rua, não havia mais ninguém. O padre havia sumido misteriosamente.

Olhei para trás. Os três tios saíram correndo, num tropel, empurrando a mim e papai, quase nos derrubando e desceram a ladeira em desabalada carreira. Pareciam ter visto o diabo ou coisa parecida.

Papai nada disse, até que entramos em casa. Trancou a porta da sala e me explicou:

— Era mesmo o Monsenhor Felipe. Nós fomos colegas de seminário. Gostava muito dele. Mas já morreu faz alguns anos.

Antonio Gobbo -

21 de janeiro de 2005 – SSParaiso –

Conto # 325 da série Milistórias -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/07/2014
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