315-CHEIRO DE MORTE
Mauricio dirigia com cuidado. A nevasca havia cessado e o panorama era monótono. O branco do mundo inteiro parecia estar ali, cobrindo a terra até onde a vista alcançasse. Era a primeira vez que vivenciava a experiência da neve cobrindo tudo. Acostumado aos panoramas montanhosos e coloridos de seu recanto de origem, nas Minas Gerais, a paisagem do inverno canadense surpreendia pelas sutis nuances, pelos detalhes e, às vezes, como agora, pela monotonia.
Dirigindo o carro, um confortável Ford com poucos quilômetros rodados, observava as manchas, geralmente escuras, dos bosques de árvores desnudas. Dirigia-se ao pequeno Lago Henk, local onde, informaram-lhe, havia ainda alces e outros animais no meio do arvoredo sem folha. Queria fotografar esses animais em seu habitat de inverno.
Ao passar rente a um grupo de bordos totalmente desnudos de folhagem, aparentemente secos, eis que nota um movimento.
Opa. Ali tem coisa. Algum animal, pensou.
Empunhando sua câmara digital, fecha a jaqueta com um movimento rápido no zíper e abre a porta do carro. Não desliga o carro, pois vai apenas dar uns dois ou três cliques.
O casaco tem na aba inferior um cordão para fechar ainda mais o agasalho. O cordão enrosca-se em um dos pinos da porta, e Mauricio, apressado para fotografar o que quer que esteja se movimentando entre as árvores, puxa o cordão com um tranco. Em seguida, bate a porta, a fim de evitar a dissipação do calor interno do carro.
Era, sim, um belo alce, que sai correndo ao ouvir o bater da porta do carro, abafado pela própria neve. Apenas uns três cliques após e eis o rapaz de volta. Ao tentar abrir o carro, verifica que as portas estão travadas. Constata, então que, quando saíra, o cordão da jaqueta havia se embaraçado no pino da trava da porta.
Um frio de terror percorre-lhe a espinha, da nuca ao cóccix. O carro estava completamente trancado, o motor ligado e ele, fora do carro, sem poder entrar.
Puta que pariu! Exclamou, dando vazão à enorme raiva com ele mesmo. Sentiu, de imediato, um cheiro forte, nauseabundo. Inexplicável. Olha ao redor, sob o carro, nada que possa indiciar a origem do fedor.
Tou ficando louco?
Mas, em seguida, recupera o raciocínio e avalia a situação. Estava a uns bons 100 quilômetros de Landon, pequena cidade onde estava residindo naqueles poucos meses de trabalho no Canadá. Pelo caminho, poucas fazendas e postos de serviço para motoristas. Não havia nenhum povoado, vila ou motel ao longo do percurso. A última referência para um possível socorro ficara atrás, a dez milhas, mais ou menos.
Saira sem dizer a ninguém onde ia, mesmo porque era domingo e não havia com quem falar a respeito de sua rápida incursão para fotografar alces.
O celular! Ao mesmo tempo em que lhe vem à lembrança, olha para o assento dianteiro do carro trancado, onde jaz o minúsculo aparelho que poderia colocá-lo em conexão com o mundo.
Pensa em quebrar o vidro. Negativo! Com este frio e o vidro quebrado, não consigo viajar nem uma milha e estarei congelado.
Começa a sapatear, movimentando-se a fim de não se enregelar.
Miséria pouca é bobagem! Tou mesmo fodido neste cu de mundo. E ficar parado, aqui, piora a situação a cada instante. Vou correr para a frente, procurar alguma fazenda ou posto de gasolina.
Não era um atleta. Mas era forte e disposto. E o desespero mais o medo de morrer de frio aumentaram a adrenalina no seu sangue. Iniciou uma corrida em cadência moderada, pois não tinha idéia de quanto teria de correr.
Teve sorte.
Após um percurso que avaliou em uma milha, deparou-se com algumas construções, evidentemente uma fazenda. Afobou-se quando viu aquele oásis de telhados e árvores desfolhadas, tudo negro num fundo de branco brilhante. Ao se aproximar, notou um movimento : era um o trator, manobrado por alguém que limpava a neve que se acumulara na noite em uma pequena área defronte ao que parecia ser a moradia principal.
Quando chegou ao pé da máquina, o tratorista cessou a manobra. Era um enorme trator, de cabine com ar condicionado. Atendendo ao aceno de Maurício, o homem abriu a pequena janela e mostrou o rosto vermelho e crestado pelo frio.
— Senhor, estou numa grande dificuldade e preciso de ajuda. — Gritou, fazendo concha das mãos, a fim de ser ouvido acima do tum-tum-tum do motor. Falou em inglês claro e pausado, a fim de ser entendido.
— Mais, oui...Est-ce que vous...— Começou respondendo em francês, no que foi interrompido por Maurício.
— Senhor, não falo francês. Por favor, fale em inglês. — Ele sabia da relutância que têm os canadenses de origem francesa em usar o idioma bretão. Por isso, tinha de usar a máxima educação com o fazendeiro.
— Ah, yes. — O fazendeiro passou a falar em inglês. — Que aconteceu?
— Meu carro enguiçou a duas milhas daqui. — E apontou para o local onde deixara o carro. — Pode me ajudar?
Com indiferença, o tratorista apontou, movimentando a cabeça, em direção à frente.
— Siga duas milhas e encontrará um posto de serviços.
Um raio de esperança passou pela mente de Mauricio. Quem sabe ele me leva até lá? Mas foi só por um instante, pois o homem retirou depressa o rosto da janela e puxou o vidro, encerrando definitivamente a comunicação entre os dois.
Que raio de ajuda é essa? Ele bem que podia me levar até lá. Se são só duas milhas. Assim pensando, se pôs de novo a trotar pela estrada. Sentiu, ainda mais uma vez, o estranho cheiro. Não era de suas roupas, nem de seu próprio corpo. Mas acompanhava-o, como uma nuvem invisível. Enjoava e embrulhava-lhe o estômago.
Já senti esse cheiro, tenho certeza. Mas não atino quando nem onde. Na falta do que pensar, foi dando tratos à bola, na tentativa de se lembrar quando sentira esse fedor inexplicável.
Ah! Sim! Foi no quarto do vovô, quando visitei-o pela última vez. Ele estava nas últimas, nem me reconheceu. Mas... por que estou sentindo o mesmo cheiro? Subitamente, acha a explicação. É o cheiro da morte! Ela está me rondando, me cercando!
Se não dera ajuda maior, pelo menos na informação o fazendeiro acertara. Menos de trinta minutos de trote e Maurício viu a construção acaçapada do que imaginou ser o posto de serviços para motorista, informado pelo tratorista francês. Acelerou e chegou esbaforido à construção.
Entrou de súbito no recinto que era ao mesmo tempo um mini-mercado, saleta de estar com algumas cadeiras e tamboretes e o controle das bombas de combustível. Um homem ruivo, gordo, de boné metido até às orelhas, despertou com um bocejo.
— Good morning! — Maurício foi logo se anunciando em inglês, por via das dúvidas.
O ruivo nem respondeu.
— Senhor, preciso de ajuda. Meu carro está enguiçado na estrada.
— Que aconteceu? Tem seguro? — Perguntou o gordo, profissionalmente.
— Sim, está segurado. Não é nada de grave. Preciso de um chaveiro. Está trancado por dentro. Também preciso de um galão de gasolina, pois o motor ficou funcionando.
— Onde está?
— Cerca de três milhas daqui, naquela direção. — Apontou no sentido de onde viera.
O homem grita para o interior da construção:
— Johnny! Johnny!
Um jovem aparece na porta dos fundos. Maurício ouve o diálogo dos dois.
— Este homem está com o carro trancado na rodovia, três milhas abaixo. Vá com ele na picape. Leve a maleta de chaveiro e um galão de gasolina. — E dirigindo-se para Maurício: — Acompanhe meu filho, ele se encarregará de tudo.
Aliviado, seguiu o rapaz. Ao sair, olhou para o céu, numa prece íntima de agradecimento. Percebeu, ao mesmo tempo, que o mau-cheiro, que o acompanhara por toda a rodovia, havia desaparecido.
A “Fedorenta” foi embora! — Pensou, um sorriso aflorando-lhe aos lábios.
Rapidamente chegaram ao local onde jazia o carro. Com grande perícia, Johnny destravou a porta do lado do motorista. Entrou, olhou o marcador de gasolina e desligou o motor.
— A gasolina está no fim. Vamos colocar a que trouxemos no galão.
Quando o rapaz despejou a gasolina no tanque, Maurício sentiu o cheiro forte do combustível. Aspirou com prazer.
Que cheiro bom. É um verdadeiro perfume, comparado com o mau cheiro da “Fedorenta”, que me rondou bem de perto.
ANTONIO ROQUE GOBBO =
BELO HORIZONTE, 3 DE DEZEMBRO DE 2004
CONTO # 315 DA SÉRIE MILISTÓRIAS =