296-O VELÓRIO INTERROMPIDO -
Foi a pior catástrofe urbana acontecida em Assunção, desde o final da guerra do Paraguai. O fogo alastrou-se rapidamente no hipermercado Yucá na tarde de ensolarado domingo. O dia quente e o frescor do ar condicionado eram convidativos às compras. Milhares de pessoas enchiam as alas e corredores do estabelecimento. Atribui-se à sobrecarga de energia elétrica, aliada a algum defeito na fiação, a causa do incêndio, que se manifestou no setor de roupas.
O pânico instalou-se na multidão, que, atabalhoadamente, procurou a saída. Uma ordem, vinda não se sabe de onde, determinou que as portas do estabelecimento fossem fechadas, a fim de que os clientes não saíssem sem pagar as contas. Os seguranças obedeceram ao determinado e cerraram os imensos portões.
Os jornais deram pormenores imprecisos: mais de quatrocentos mortos, cerca de 150 desaparecidos (que são, na realidade, mortos ainda não retirados dos escombros), além de milhares de feridos.
Mais de cinqüenta mortos não foram identificados. A confusão estabeleceu-se, quando a televisão passou a divulgar as listas provisórias de feridos e mortos identificados. Muitas famílias de pessoas que estavam no sinistro local, cujos nomes não constavam de feridos nos hospitais, receberam corpos não identificados como sendo seus parentes.
Foi o que aconteceu com Maria Madalena Romero. Grávida, com 37 anos, foi internada em um hospital, onde permaneceu alguns dias, incógnita, sob tratamento. Talvez por ter sido recolhida à maternidade do hospital, devido ao seu estado. Ficou à margem das “listas provisórias”, como, pitorescamente, a polícia chama as relações de mortos e desaparecidos, nas quais foram verificadas a duplicação e até mesmo a triplicação de nomes. O nome de Maria Madalena, contudo, não constava em nenhuma lista, sequer por uma única vez. À família foi dado um corpo carbonizado, sem possibilidade de identificações.
Ao receber a alta hospitalar, Madalena voltou para casa na noite de domingo, uma semana após o desastre. Chegou no exato momento em que a família pranteava sua morte, em velório concorridíssimo, pois era pessoa conhecida e querida no bairro Limpio, onde morava.
O susto foi geral. À vista da mulher que estava sendo velada a confusão se estabeleceu, com os parentes e vizinhos fugindo do local. A mãe de Madalena desmaiou quando viu a filha viva. Gente simples, supersticiosa, jamais poderiam pensar que o menos pior havia acontecido a Madalena.
= Nunca pensei um dia na minha vida que iria assistir ao meu próprio funeral. Fiquei muito abalada. Até meus filhos saíram correndo. Mamã caiu e tive que ampará-la. Quando abriu os olhos e me viu viva, não acreditava. Expliquei-lhe tudo. Então, ficou feliz de me ver viva.
Após a notícia chegar às autoridades, veio a parte burocrática. No dia seguinte, Madalena recebeu a visita de dois investigadores a polícia.
= Eles me pediram os documentos para retirar meu nome da lista dos falecidos. = Ela declarou aos jornais. = Também me disseram para comparecer ao Registro Civil e fazer um requerimento para comprovar que continuo viva.
ANTONIO GOBBO –
BELO HORIZONTE, 9/AGO/2004
CONTO # 296 DA SÉRIE MILISTÓRIAS
Nota: Inspirado em fato real, notícia de jornal.