A IGREJA E O BOTECO

“Sentindo frio em minh'alma, te convidei pra dançar, a tua voz me acalma, são dois pra lá, dois pra cá...” A música do rádio lembrou-lhe bons momentos e para comemorar pediu mais um rabo de galo. Rabo de galo é aquela mistura fatal de pinga com groselha, desce macio e sobe inclemente. Estava sentado em frente a uma mesa, daquelas de lata, dobráveis, sob a sombra de um Ipê amarelo, todo florido, observando a praça e seu movimento. Do outro lado ficava a Igreja Matriz. A praça não tinha coreto, mas tinha chafariz, desses em que a água dança, as luzes mudam de cor, os turistas jogam moedas e as crianças se esbaldam em dias de calor. A rua passava apenas dos lados, não contornava e a pessoa podia sair do boteco e ir para a Igreja sem ter de atravessar nenhuma rua, mesmo atravessando a praça. Era retangular, com piso de pedra portuguesa, mesclado de branco e preto, quase uma renda. Como tinha poucas árvores, o Ipê resplandescia e glorioso comandava o espetáculo. As construções, quase todas residenciais, algum comércio, eram na sua maioria térreas. Apenas dois sobrados se destacavam e no balcão de um deles aconteciam os discursos cívicos e políticos vez por outra. Era o prédio da Prefeitura. No canto leste havia um mastro, sempre sem bandeira. A última o vento destruiu e não mandaram fazer outra. A Igreja era comum, apenas uma torre sem carrilhão e uma nave com pé-direito baixo, nenhuma pintura além da Via Sacra. Duas estátuas de gesso. Um relógio quebrado marcava meio dia em ponto, mas há quem diga que quebrou meia noite. Mas como já faziam pelo menos trinta anos do fato, poucos podiam afirmar qual das horas era a correta. A maioria era pela meia noite pois, assim, davam vazão para a lenda da mocinha deflorada. Lenda que atraia mais turistas do que a Santa que um dia chorou. E lá, basicamente, se vivia disso. Nosso observador, a esta altura no seu quinto “drink”, fora atraído por estas estórias, tanto uma como outra. Achava prudente pesquisar primeiro, mas tinha a intenção de tirar dinheiro disso. Nada extraordinário, apenas uma soma que desse para seguir adiante, para o próximo golpe, a próxima cidade. Vivia de pequenos golpes, vendia um elixir aqui, uma pomada milagrosa ali, ou simplesmente abusava da boa-fé das pessoas simples. Chegou a seduzir a mulher de um Prefeito certa vez. Teve de sair correndo, é verdade, perdeu todos os seus pertences mas divertiu-se a valer. Quando levantou para ir ao banheiro, sentiu os efeitos do calor que potencializou a pinga e, sem perceber, desmaiou. Caiu ali mesmo, feito boneco de pano, em plena praça. Acudiram. Quando acordou estava em uma cama macia, cheirosa, em um quarto simples no qual a cortina balançava ao vento. Nas paredes alguns recortes de revista, fotos, em sua maioria paisagens, colados com “durex”. Uma caiação manchada, meio amarelada e um guarda-roupas, duas portas, uma com espelho bizotado. Olhou em volta, levantou-se e foi até a janela. Eram os fundos da casa, um quintal cheio de galinhas, pintinhos e sujeira. Tinha um poço. Levou um grande susto ao saber que estava na casa paroquial, nos fundos da Igreja. Soube assim que chamaram para a janta. Não era nem cinco da tarde, mas já estavam servindo a janta. Não muito depois ficaria escuro e lá não tinha luz elétrica. Apenas a casa era desprovida de luz pois o padre não tinha dinheiro para pagar a conta e poucos eram os paroquianos dispóstos a ajudar. A cidade era bem servida nesse quesito. A Santa nunca mais chorou e as moedas dos turistas eram suficientes apenas para por comida na mesa. Teve um estalo: “Padre...” e iniciou uma conversa interessante de como atrair mais pessoas e tirar dinheiro disso. Ele organizaria, divulgaria e dividiria a renda. O padre, a princípio relutante, acabou achando boa a idéia mas precisava consultar o Bispo na Capital. Viagem longa, cansativa mas considerando o propósito, ia valer à pena. No dia seguinte, cedinho, o padre pôs os pés na estrada. Não deu meia hora do padre ter ido, nosso personagem, para o qual não demos nome e nem vamos dar, já estava de batina anunciando a todos ser ele o novo pároco. Aos berros anunciava na escada da porta principal, enquanto um garoto solitário chutava uma bola contra a parede, que Deus iluminara seu caminho e que ele iluminaria a vida daquela gente. O padre jamais chegou à Capital, assaltado e morto que foi pelo caminho. O padre “novo”, não sabendo disso e não contando com isso, tratou de por seu plano em ação e foi logo visitar os fazendeiros. Era bem falante e sedutor. Voltava sempre com uma boa e farta contribuição no bolso. Foram passando os dias e por pensar que o padre, o morto, não tardaria a voltar começou a arquitetar a sua fuga. Estava pensativo, sentado em um dos bancos, absorto, quando foi abordado por uma linda jovem desejosa de se confessar. A religião do nosso amigo era a da adoração da virgem. Não, não a Nossa Senhora, e sim qualquer virgem. Era alucinado por elas e dizia que estavam em extinção, não desperdiçando qualquer oportunidade. Não demorou e fizeram amor no confessionário. Começou com uma reza, a moça de joelhos, mas os pecados pareciam muitos e houve a necessidade de serem os demônios exorcisados. “Tem que por isso ai dentro e sugar os demônios até deixar uma baba benta no seu lugar...” Convenceu a risonha, feliz fiel, a repetir o procedimento. “É preciso estar atento com estas coisas. Se você sonhar com isso à noite vamos fazer mais dez vezes, se não sonhar teremos de repetir vinte.”, “Sim padre, a benção...”. A coisa ficou boa e ele recebia as coleguinhas da afortunada exorcisada diáriamente. Como nada do padre voltar, foi ficando. O bolso cheio e a mulherada à porta, não podia esperar vida melhor. Envelheceu naquele fim de mundo até que um movimento popular, constituído basicamente por mulheres, fez chegar uma carta ao senhor Bispo, pedindo a substituição do padre que não mais exorcisava tão bem assim. Suas forças estavam minguando e a vida tem destas coisas.

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 15/05/2007
Reeditado em 17/01/2010
Código do texto: T487742
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