VOZES DA NOITE
Teodoro nunca esqueceu o incidente. Todas as quartas-feiras, seu velho amigo tocava a campainha — às nove horas — para jogar xadrez. Naquela noite, porém, antes de iniciar o primeiro movimento no tabuleiro, Leonildo, com o peão branco ainda entre os dedos, disse que precisaria de uma dose de conhaque. Ao invés de mais uma partida de xadrez, teriam uma longa conversa.
Os dois homens beberam sem trocar uma palavra até que, encorajado pelo efeito do álcool, Leonildo decidiu abrir o jogo. Seu drama não era recente. Tudo começou numa noite, há cinco anos. Enquanto lia um romance policial, ouvira, por três vezes, uma voz chamar seu nome. Teodoro sabia que há mais de onze anos o amigo viúvo morava sozinho. Seu temperamento introvertido tornava improvável a possibilidade de que alguém na vizinhança o tivesse chamado.
Leonildo, que falava com o olhar preso ao chão, interrompeu a confidência para abrir a garrafa de conhaque deixada ao seu lado. Deu um grande gole no líquido acobreado, e o amigo, aproveitando a brecha, ponderou:
— Talvez tenha sido um sonho. Um cochilo durante a leitura explicaria tudo.
— Se esta história fosse simples. Mas não termina aí.
As vozes voltaram na noite seguinte. Leonildo acabara de fechar o livro, e preparava-se para dormir, quando sentiu o estômago vazio. Ao pegar um dos pêssegos que a empregada deixara na fruteira, mais uma vez, ouviu seu nome. A voz soava apavorada numa súplica:
— Eu imploro, Leonildo, não me devore!
Teodoro arregalou os olhos. Pêssegos falantes? Seu amigo enlouquecera. Leonildo, prevendo o diagnóstico prematuro, defendeu-se:
— Sei que parece loucura. E justamente por ter esta consciência, acredite, não estou louco.
Diante de seu incrédulo interlocutor, Leonildo retomou o caso. Após ouvir aquele pedido insólito, soltou a fruta, que caiu sobre a mesa. Na queda, o pêssego deixara escapar um gritinho. Completamente desnorteado, ele passou a andar de um lado para o outro, repetindo para si mesmo: "Mantenha a calma, Leonildo, mantenha a calma".
— E aí aconteceu o pior.
Por um breve instante Teodoro teve vontade de rir, mas em nome da longa amizade, controlou-se. Leonildo prosseguiu o relato bizarro com uma revelação. A tal fruta faladora não era um pêssego qualquer. Leonildo fora capaz de ouvir sua voz somente porque em outras encarnações ele também havia sido um pêssego. Devorá-lo significaria matar alguém de seu próprio sangue. Naquela fruteira estava parte de sua família. Todos os pêssegos, em coro, atestaram a veracidade da declaração.
Tamanho disparate não impediu Leonildo — amante das ciências exatas — de questionar o pêssego tagarela. Ora, se aquilo tivesse o mais remoto fundo de verdade, por que não ouvira antes seus frutíferos parentes? Muito simples. Leonildo não estava preparado para encarar sua verdadeira história num mundo repleto de Neros, Napoleões e Marias Antonietas. Entretanto ele não era fruto de uma reencarnação especial. Leonildo nunca fora nada além de um pêssego. Só um? Não. Havia sido muitos pêssegos até aqui. Agora vivia sua primeira experiência humana.
E o mais assombroso estava por vir. Tudo aquilo calara tão fundo em sua alma que, finalmente, Leonildo compreendera porque sua vida quase se resumira a contemplar os pêssegos amadurecerem na fruteira. Isolado, desde a morte da esposa, e sem outros laços que ocupassem seu tempo, saía de casa apenas uma vez por semana: às quartas-feiras para jogar xadrez com o amigo. Afinal era um pêssego diferente.
(*)IMAGEM: Google
"The Chess Players", Honoré Daumier
http://www.dolcevita.prosaeverso.net
"The Chess Players", Honoré Daumier
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