251-OS CINCO DEDOS DE SATÃ-

Era um padre radical. Seus sermões, inspirados nos profetas do velho testamento, eram imprecações da primeira à última palavra, contra o que ele chamava “Os cinco dedos de Satã” que dominavam a pequena cidade de Sapetaperê.

— Temos aqui em nossa cidade não apenas quatro, mas cinco (e espalmava a mão direita, com dedos esticados) — sim, cinco Cavaleiros do Apocalipse, cinco emissários do mal. São os Cinco Dedos de Satã (novamente a mão espalmada, agora a esquerda) — Os cinco dedos de Satã que dominam nossa cidade.

Maldizia os maçons, as meretrizes,. os bailes dos dois clubes locais, os espíritas e o carnaval. Algumas maldições eram constantes, entrava ano, saía ano, martelando todos os domingos contra os maçons, contra as putas e os espíritas. Outras eram sazonais, só aconteciam quando havia bailes (de formatura, de reveillon, ou da eleição da Miss Cidade) e, naturalmente, nas semanas que precediam o Carnaval.

Em seus sermões do alto do púlpito, elevado a uns três metros acima dos fieis destilava toda a ira divina, que, passando por seus lábios, tornava-se quase diabólica.

— Não sou contra as pessoas, sou contra as idéias. Devemos extirpar a maçonaria, vencer o espiritismo, acabar com o meretrício. — Proclamava aos fiéis que, basbaques, o ouviam de boca aberta ou com as cabeças inclinadas em cochilos irresistíveis. Em seguida, desancava contra o presidente da maçonaria, o líder dos espíritas e a Maria Tirolesa ou a Polaca, proprietárias das principais casas na zona do meretrício.

Se não excomungava as pessoas e entidades que maldizia era porque não tinha poderes para tal — ou porque já tinha sido advertido pelo bispo sobre a virulência de seus sermões. Mas a cruzada era constante contra os tais Cinco Cavaleiros ou Cinco Dedos de Satã.

Suas palavras não surtiam o menor efeito. Ou, antes, no que concernia às prostitutas, era uma propaganda, pois muitos ouvintes saíam da igreja com a curiosidade aguçada a respeito das mulheres de “vida fácil”. Quanto aos clubes, à maçonaria e aos espíritas, não encontrava a menor repercussão. E os foliões do carnaval, esses nem queriam saber dos conceitos e das condenações do Padre Durval.

No confessionário, era o terror. Os fiéis tremiam na fila. As mulheres, com seus pecadilhos, recebiam duras penas em orações e prestação de serviços para a Igreja. Os homens eram sujeitos a poucas rezas, mas penalizados com doações de materiais e até dinheiro à paróquia, para a expiação de suas culpas.

Assim, através do terror e das penas, Padre Durval ia mantendo seu império. A tal ponto de escolher as fiéis que deveriam ajudar nos serviços da paróquia: a sopa para os pobres, a manutenção da casa paroquial, as costureiras e bordadeiras que deviam manter as roupas do ritual, as fazedeiras de hóstias, as limpadoras do templo, e assim por diante.

Dentre as auxiliares mais eficientes se destacavam duas viúvas, que o ajudavam diuturnamente: dona Maria Emília, antes casada com o tenente Ferreira, e dona Tereza de Castro, viúva do velho Zé Marcondes, em vida zelador e coveiro do cemitério. Dona Emilinha ajudava na manutenção da casa paroquial: era de fato a provedora. Administrava as compras do necessário (e à vezes, do supérfluo) para a manutenção do padre: comida, roupa lavada, limpeza da casa. Esperta e ágil, apesar de miúda, tinha como auxiliar Neguinha, uma mulatinha muito serelepe e dada a fuxicos. Já dona Tereza era responsável pelo bom andamento da sacristia: da limpeza, da manutenção das vestes, dos paramentos, das sobrepelizes, enfim, tudo pronto a tempo e a hora para a celebração dos diversos ritos. Mulher sacudida, grande, morena ainda desfrutável, não passava um dia sem ir à sacristia, a ver se tudo estava de acordo com as exigências do Padre Durval.

As duas mulheres, ainda que voluntárias nos serviços ao pároco, recatadas viúvas, carolas, estranhamente eram as que mais freqüentavam o confessionário. E sendo ambas voluntárias a serviço da paróquia, as duas pouco se falavam, cada qual envolvida com os afazeres de suas responsabilidades.

Com o passar do tempo, (não tanto tempo assim...) os serviços das duas senhoras se estenderam além da sacristia e da copa-e-cozinha da casa paroquial. Passaram a servir o reverendo também nas suas necessidades... digamos assim...de homem.

A casa paroquial distava três quarteirões da Igreja. Rua discreta, de pouco movimento de dia e nenhum à noite. Soube o homem organizar tão bem o esquema de freqüência das duas mulheres, que elas ignoravam mutuamente as visitas noturnas da rival ao amado pastor. Dona Emilinha, após despachar as empregadas que a ajudavam durante o dia, permanecia discretamente na casa paroquial até de madrugada. Isto nas segundas e quartas-feiras. Só saía alta madrugada, a cidade toda adormecida. Com seu passinho miúdo e cuidadoso, esgueirava-se através das ruas e vielas mal iluminadas.

Dona Tereza ia à casa do padre todas as terças e quintas-feiras. Se lhe perguntassem, tinha a resposta na ponta da língua: ia fazer hóstias. Mas nunca ninguém lhe perguntou nada. Esta não gostava de perambular pela madrugada. Deixava o padre no máximo pelas dez horas.

A situação perdurou por muitos anos em segredo relativo até o dia em que ambas descobriram que o padre era ambivalente. Neguinha, dizem, foi a fuxiqueira que contou para Dona Emilinha sobre as visitas de Dona Tereza. E Dona Tereza ficou sabendo das “horas extras” de dona Emilinha quando esta, num acesso de ciúme, procurou a rival na sacristia da igreja.

Irrompendo qual um pequeno furacão, a mulher não respeitou nem a presença do padre, que meditava a um canto do recinto, quase que escondido.

— Então, sua safada, tá servindo o Padre Durval na cama, hein? — A baixinha era corajosa. — Com a desculpa de fazer hóstias, ficava era seduzindo nosso bom pastor.

Tomada de surpresa, dona Tereza vacilou por uns instantes. Tempo suficiente para que dona Emilia, pulando como uma marionete, agarrasse seus cabelos.

— Ai, sua desgraçada. Me larga. Me larga. — Deu um empurrão, arremessando a pequena mulher de encontro à cômoda de paramentos, que estralou com o impacto. O Padre saiu de sua meditação e entrou na contenda, para apartar as duas. No calor da luta, as mulheres se engalfinharam. Foi com dificuldade — e também ajudado pelo sacristão, que, ouvindo o barulho, acorreu da nave, onde limpava os bancos — que as duas foram separadas. A essa altura, já estava desgrenhadas e com roupas rasgadas.

Dona Emilia tinha um corte na testa e, embora presa pelas mãos enormes do sacristão, invectivava contra a rival:

— Ele é meu, só meu! — e derramou-se num pranto aberto. Dona Tereza resfolegava, puxando a alça do vestido, arrebentada, tentando cobrir o colo desnudo, emudecida pelo susto e pela surpresa.

— Parem, parem.. Mulheres de Deus! Que vem a ser isto?

Agindo com argúcia, o padre ordenou ao sacristão:

— Leopoldo, leve Dona Maria Emilia para sua casa.

E quando o sacristão saiu, voltou-se para dona Tereza:

— Que papelão, hein, dona Tereza?

— Ela que foi a culpada. Eu nem conhecia ela direito.

— Pois bem. A partir de hoje, a senhora não vai fazer mais hóstias lá em casa.

Por mais que os personagens pretendessem esconder o acontecido, por interesses mútuos, o povo ficou sabendo da briga das duas beatas pela exclusividade das atenções do “bom pastor”, como disse dona Maria Emília.

As duas mulheres, antes devotas e dedicadas, foram sumariamente destituídas, pelo padre, de todas sus funções, diurnas ou noturnas. Perdeu duas excelentes auxiliares. Para compensar, aumentou a virulência dos seus sermões. Os “Cinco Dedos de Satã” multiplicaram-se e as penas confessionais dobraram de rigor e de valor.

Mas o povo fervoroso de Sapetaperê não padeceu por muito tempo dessa nova faceta ferocíssima do Padre Durval.

Poucos meses depois, foi transferido para uma distante paróquia num dos piores lugarejos na região mais miserável do estado, onde, dizem, o Judas perdera as botas.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 29 DE OUTUBRO DE 2003

Conto # 251 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/06/2014
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