Não apenas um rosto conhecido

E para aquela última cena, Johnny “Machinegun man” Smith pegou o seu órgão sexual, introduziu na boca de Sia “Big Pussy” Lacroix e, com movimentos repetitivos de para frente e para trás, conseguiu chegar na ejaculação.

- Corta – disse o diretor J.K. Romero, o monstro do mundo pornográfico – Ficou perfeito, Johnny. Bem pessoal, por hoje é só! Vamos agora editar todas as tomadas e ver se o filme ficou legal. Alguém ajude a Sai a se limpar, com uma toalha, por favor.

E acabara finalmente a gravação do mais novo filme de Johnny. E isso era um alento para ele. Um ator que adentrava aos 40 anos. Que há mais de 20 anos estava trabalhando com o entretenimento adulto. Que ganhou inúmeros prêmios nas premiações do pornô. Era uma celebridade nesse meio. E fora dele, também.

Quantas foram as vezes que ele estava aproveitando suas férias, quer em Miami Beach, quer em qualquer lugar, e os seus fãs o reconheceram, indo ao seu encontro pedindo autógrafo. No começo, ele achava tudo legal. Mas agora, décadas depois, estava cansado. Só queria que o dia acabasse para ir pra casa, relaxar um pouco, enquanto ouvia jazz no som e ficava olhando o álbum de fotos de sua família. Essas eram as noites na sua casa.

Era cômico ser um homem conhecido pelo seu instrumento de trabalho, um senhor órgão de 40 cm., mas não ser conhecido por outras facetas. Era um bom saxofonista, gostava de pintar e, segundo uma amiga sua, de uma galeria de arte de L.A., “suas obras denotam bem o movimento neo-pós-moderno, com a intensidade e vivacidade das cores e a violência com que são transmitidas pra tela”. Era também um exímio fotógrafo. Por vezes tentou participar de concursos de fotografia, incentivado por amigos do meio em que trabalhava, que fotografavam as cenas de sexo protagonizadas pelo nosso herói. Mas, ao ser indagado sobre qual profissão exercia, era sempre impedido de participar de tais concursos. Muitos fotógrafos o viam com profundo preconceito. E inveja. Reconheciam a qualidade do seu trabalho, mas, não permitiam que ele adentrasse nesse seleto meio de pessoas. Era um apartheid social. Gostava de rap, e, vinte anos atrás, chegou a fazer parte de bandas que, anos depois, atingiriam o sucesso. Naquele tempo, as letras versavam sobre a vida no gueto, sobre a violência, exclusão. Eram os tempos áureos. Mas, seus problemas com a lei, o levaram para a prisão por o que seria inicialmente 5 anos, porém, acabou ficando apenas 2 anos, graças a análise que um juiz teve do seu caso. Depois que saiu da prisão, recebeu um convite e entrou para o mundo do pornô. Hoje, 20 anos passado, reconhece que o rap é uma merda, que os caras tão mais preocupados em retratar como são fodas e como suas vidas são luxuosas, quantas festas participam e quantas mulheres têm; ao invés de retratar a realidade do gueto, que pouco mudara nessas duas décadas. Não era a toa, de cada 10 jovens que queriam se tornar rapper, apenas 1 atingiria o sucesso. Sem contar que muitos desses que chegaram lá, acabavam, futuramente, ou caindo no ostracismo, ou sendo assassinados. Era um ramo difícil de trabalhar. Fique rico ou morra tentando, dizia um energúmeno. Quantos jovens acabaram morrendo nesse processo? O noticiário, às vezes, apresentava o genocídio que ocorria nos guetos. Mas, a maioria das vezes, pouco falava a respeito. O ator sabia como funcionava. O que se tornava comum, vendia menos.

Mas, para ele, tudo isso eram apenas hobbies. Porém, ao acabar de gravar aquele filme, sabia que seria o último de todos. Era finalmente, uma aposentadoria, depois de anos sendo prolongada, em decorrência do contrato. Sim, com o contrato, ganhou dinheiro, é verdade. E nos primeiros anos da sua vida como ator “profissional” fora feliz.

Mas, como dizia um amigo seu, poeta, do gueto “a felicidade é estado de mente passageiro”. Nunca poucas palavras ditas foram mais verdadeiras que essas. Após dar uma festinha e ingerir quantidades absurdas de álcool, cumulado com drogas como ecstasy e transar loucamente com várias mulheres, o senhor Smith apagou. Quando acordou, despido de qualquer roupa, sentia frio, pois, lá fora, em New York, estava frio. Era inverno. Nevava. Naquele momento, sentiu-se tão solitário. Lembrou-se de quando sua mãe ia cobri-lo nas noites frias. Tinha uma boa família. Apesar de seu pai ter fugido, e deixado sua mãe criando 4 crianças sozinha no Bronx, ela conseguiu criar bons filhos, conciliando a rotina de trabalho duro como garçonete num bar de quinta e criar os filhos, sozinha. Quer dizer, alguns bons filhos. O seu irmão mais velho entrou em uma gangue. Foi assassinado 2 anos depois, numa emboscada feita pela máfia. Sua irmão mais velha, Martha, seguiu quase o mesmo caminho que ele. Porém, ao invés de se tornar um pornstar, foi sabotada por um cafetão interesseiro. Não tinha notícias dela há anos. A última coisa que sabia é que continuava a trabalhar na rua, como prostituta, dependendo da sorte. Sua irmã mais nova, Alicia, essa sim, conseguiu um sucesso relativo, num caminho considerado bom. Tinha uma voz linda e cantava na igreja local. Fora descoberta por um olheiro da indústria de música gospel. Fez um relativo sucesso, dentro do meio. Até que um dia, subitamente, veio um colapso nervoso. Ela enlouquecera. Virou uma maníaca religiosa e teve de ser internada num sanatório.

Naquele momento, descobriu que sua felicidade havia ido embora. Seu apartamento cheirava a vômito, estava todo bagunçado, todo revirado. Com ele, ainda se encontravam duas prostitutas, uma loira e uma ruiva, que jaziam no chão. A ruiva respirava, mas a loira não. Chamou a ambulância, mas era tarde demais. Ela estava morta. Novamente, Johnny enfrentou a lei, mas, dessa vez, a lei perdera. Fora inocentando das acusações que havia sofrido. Apesar de haver fortes indícios de que ele entrou com a droga no seu apartamento, trazida por um amigo, El Chacal. Mas, fora inocentando, era isso que importava. Antes de sair do tribunal, o juiz disse que queria dar umas palavrinhas a sós com ele. Todos saíram do local, menos o juiz e ele. O juiz disse que era um grande fã dele, dos filmes e tudo o mais. Pediu um autógrafo. Johnny, sem titubear, deu o autógrafo e se evadiu do local. Pela primeira vez na vida, sua profissão havia o salvado de problemas.

Lembrou-se disso enquanto se arrumava para sair do estúdio onde gravavam. Porém, era um cara legal e solicito e perguntou da vida de Sia para ela:

- Como vão as crianças? – perguntou – Suas duas princesas estão bem?

- Bem, estão sim Johnny – respondeu – Amanhã será a apresentação de ballet da Karina! Que orgulho! Minha mãe queria que eu fosse bailarina. Pobre mãe, será que a decepcionei?

- Bem, de certa forma, hoje você trabalha muita com o corpo e seu movimento, só que em espaço reduzido e para um objetivo quase que estático.

- Há ha. Boa piada. Pobre mãe. Morreu de enfarto tão jovem. Deixou-me sozinha. Mal era uma adulta. Tive de entrar nessa vida e sobreviver a um mundo frio e cruel.

Nisso, sua respiração ficou meio ofegante, seus olhos cerraram-se. Um choro estava a caminho. Johnny sabia disso e, imediatamente, abraçou-a para consolá-la.

- Obrigado – disse ela – realmente, precisava de um abraço amigo.

Johnny pensou na sua mãe. Em tudo que ela queria que ele tivesse sido e que não foi. Quando era uma criança, vivia fazendo planos do seu futuro. Quando o tio Peter teve uma crise hepática, contava ele apenas 7 anos. Disse para sua mãe que queria ser médico, para poder ajudar as pessoas. Os olhos dela encheram-se de lágrimas, de tão emocionada que ficou com o comportamento do filho. Abraçou-o fortemente e apoiou sua decisão.

Mas era difícil atingir seus objetivos sendo negro, numa sociedade racista e intransigível. Se um ou outro excluído obtinha sucesso, era só para manter as aparências. Sua escola dava pouco apoio e pouca base. Era uma escola pública, típica do gueto, com a violência rondando todos. Professores desmotivados com os baixos salários e com problemas, tais como depressão, alcoolismo, dentre outros. E a presença constante das gangues. Alguns assassinatos ocorriam no círculo escolar. A cada ano, entrava diretor e saia diretor. Ninguém conseguia resolver o problema dessa escola. Inclusive, anos depois, já como um ator famoso, soube que ela havia sido fechada depois que o diretor foi pego estuprando uma aluna. Só que ela era namorada de um dos membros fundadores e de grande relevância da gangue. Ao avisar seu namorado do ocorrido, ele resolveu acertar as contas com o diretor. Levou sua turma. Ao sair da escola, o diretor foi espancado até a morte por 12 pessoas. A polícia abriu um inquérito para apurar o que tinha ocorrido e como ocorreu, mas, o inquérito não conseguiu indicar nada. As testemunhas tinham medo de dizer o que ocorrera e não havia provas materiais. O caso acabou sendo arquivado e a escola foi fechada.

Foi lá que entrou pra gangue. No começo, cometia apenas pequenos delitos. Mas, fora ganhando notoriedade. E os delitos começaram a ficar maiores. Em decorrência disso, já fora alvejado, em um incidente, por membros de outras gangues. Contra ele, foram desferidos alguns disparos. Por sorte, nenhum deles atingiu algum ponto vital. Fora socorrido e, ao descobrirem sobre seus delitos, fora preso. Julgado, fora condenado. E o resto é história. Apenas é necessário saber umas coisas.

Na cadeia, por ser de uma gangue bem conhecida, não teve problemas. Pelo contrário, teve ate regalias. Mesmo porque, em momento algum, delatou seus comparsas. Tinha ainda valor e importância no mercado. Conseguiu arrumar um bom advogado com um companheiro de cela que precisava que alguém fizesse um favor para ele, do lado de fora, obviamente. Precisava que um pacote fosse entregue. Johnny falou que poderia providenciar isso. Contatou sua irmã, a prostituta, para que ela o ajudasse. E assim foi feito. O seu companheiro, como forma de agradecimento, indicou um bom advogado. Disse para ele, que ele conseguiu reduzir o tempo de prisão dele, que era, inicialmente, de 30 aos, para “apenas” 10 anos. Johnny não hesitou e procurou o advogado. Em menos de 6 meses, já havia conseguido reduzir sua pena.

Antes de sair da prisão, ficou imaginando como seria lá fora. Pensava em voltar pra vida que tivera. Com a sua lealdade, provavelmente, conseguiria um papel de maior importância. Pensou ainda, que suas garotas de antes, estariam animadas para recepciona-lo, esperando pela sua saída. Esperava muito, esperava tudo.

Mas, novamente, como dizia o poeta “depois que se está lá dentro, a vida aqui fora é tão... estranha”. Sentiu isso na pele. Ao sair, a primeira sensação que experimentou, foi uma das melhores que já experimentara em toda a sua vida, a liberdade. Sua mãe estava o esperando lá fora. E naquele momento, toda e qualquer ideia de voltar pra vida que levara outrora estava fora de cogitação. Abraçou-a e chorou, pedindo perdão pelo que fizera até então. E, com isso, desvencilhava-se dos pensamentos anteriores. Porém, passado um tempo, começou a estranhar o mundo aqui fora. Não conseguia emprego, e quando o conseguia, conseguia ficar nele por no máximo uma semana e não mais que isso.

Até que um dia, uma amiga dos tempos de colégio, que fazia carreira no mercado pornográfico o chamou para um teste. Ele passou e atuou no primeiro filme. A primeira vez é sempre inesquecível. E para ele, o que jamais será esquecido é a estranheza que tudo causava. Estava nervoso. Estava confuso. Tinha medo de não dar certo. A atriz com quem contracenava era famosa. Lyla Rodriguez era seu nome. Ela o acalmou e explicou como tudo funcionaria. A partir daí, ele não estava mais nervoso e conseguiu fazer tudo corretamente. Depois disso, veio a carreira de sucesso, a fama, a glória, o respeito.

Mas isso era pouco para quem queria muito mais da vida. Queria ser respeitado e conhecido pelo seu intelecto. Ao acabar de se arrumar, ficou andando a ermo pelas ruas de L.A.. Aquela cidade, que outrora proporcionara muitos bons momentos, era apenas mais uma metrópole imensa, com seres solitários. Depois de horas caminhando, chegou a seu lar, doce lar. Um lar vazio, cheio de bens materiais, que o faziam sentir-se mais só ainda. Pensava em se embriagar, como fazia costumeiramente. Pegou a garrafa de whisky e, quando estava quase entornando-a, lembrou-se do que sentira quando abraçara a sua colega de profissão e teve de ligar para a sua mãe. E foi o que fez.

- Mãe, sou eu, teu filho. Disse isso meio sem jeito

- Filho, como está? Disse ela, visivelmente emocionada pela ligação

- Bem. Acabo de me aposentar hoje. Disse meio aliviado

- Mas já? Filho, você é tão novo ainda. Disse meio preocupada

- Está acabado! Ninguém jamais me verá atuando em um novo filme. Disse de forma resoluta.

Silêncio constrangedor por alguns segundos. Sua mãe estava contente que aquela exposição extrema do filho havia acabado. Ele também estava contente. Mesmo assim, ambos estavam calados. Ela certamente queria falar mais coisas com ele, perguntar sobre os sonhos de outrora. Mas sabia que o mundo meritocrático em que viviam, não permitia que muitos construíssem e atingissem seus sonhos. Ela mesma, na sua juventude, queria ser cantora de soul. Chegou a gravar umas demos e enviá-las para as gravadoras. Mas teve seu sonho negado por muita delas. Até que uma gravadora duvidável aceitou gravar um álbum com ela. Porém, os custos ficavam sobre a responsabilidade exclusiva dela. Aceitou toda a onerosidade da situação. Pagou e pagou caro para ter seu álbum gravado. Mas este serviço fora realizado. Porém, deparou que seu álbum não estava em circulação no mercado. Soube depois que o dono da gravadora, havia a enganado e a vários outros artistas, pegou o dinheiro deles e sumiu do mapa. Pouco depois do seu sumiço, a gravadora faliu. Sem nada para manter o seu sonho vivo e tendo que se sustentar, começou a trabalhar no bar. Era um emprego horrível. Por ser uma mulher bela, era costumeiramente assediada por bêbados depravados. Pelos perdedores da América. Por aqueles que viviam o pesadelo americano. O american wrong way of life.

Em um dos incidentes mais graves, um dos perdedores passou a molestá-la, passando sua mãe na sua genitália, pela parte externa da roupa. Ela, visivelmente constrangida, tentou se desvencilhar do ataque, porém, ele avançou para cima dela. Andando para trás, mal percebia que seu espaço diminuía, até que encostou-se em um dos cantos do bar. Tentou defender-se uma vez mais, porém, foi rapidamente subjugada pelo bêbado. Quando ele preparava para molestá-la, uma mão puxou-o com força. O corpo do bêbado cai no chão, com força. Então, aquele que o arrastara para trás, começa a golpeá-lo algumas vezes, para neutralizar de vez a ameaça. Após leva-lo a knock-out, o homem que a salvara do ataque jogou o lixo humano para fora do bar. Ela, impressionada e agradecida, ofereceu-lhe uma bebida, que ficou por conta da casa. Estava ele vestido como oficial da marinha, como marine. Ela, depois de conhecê-lo melhor, descobriu que era um veterano do Vietnam. Então, ele, que era a primeira vez que adentrava no bar, passou a ser um cliente habituê do local. Depois de tantas idas, conseguiu leva-la a uma discoteca, onde se beijaram pela primeira vez. E, decorridos 3 meses, já estavam vivendo junto. Nove meses depois, veio o primeiro filho e a necessidade de casamento. Porém, um dia, após 4 anos casados, ele teve um dos surtos, em decorrência das sequelas sofridas na guerra. Agrediu violentamente a mulher. Ao voltar a si, percebeu o que fez, com o corpo da sua amada caída no chão. Saiu gritando desesperado, que tinha matado sua mulher. Mas, ela não havia morrido. Chamou ajuda pelo telefone. Porém, antes da ambulância chegar, evadiu-se abruptamente do local. Nunca mais retornou. Teve notícias de que ele havia virado mendigo, mas, nunca mais o viu.

- Mãe – disse o filho após um longo silêncio – vou desligar. Preciso relaxar um pouco.

- Filho, não me vá fazer besteira – disse a mãe preocupada

- Pode deixar – disse, com voz duvidosa

E desligou. Nisso, resolveu novamente embriagar-se. Era preciso. Sua vida, sem a realização pessoal, não passava de um pesado fardo que deveria carregar. Em poucos minutos, acabou com a garrafa de whisky. Não estava satisfeito, precisava de mais. Achou uma garrafa de vodka e acabou entornando-a. Ainda longe de estar saciado, procurou por mais bebidas alcóolicas, mas deparou-se com um estoque acabado. Teria saído de casa, mas, mal conseguia manter-se em pé por alguns minutos, imagine andar ou dirigir até a loja mais perto. Desistiu. Após essa derrota, caiu de joelhos ao chão. Ergueu os braços abertos e soltou um urro tão grande e tão alto que, em outras situações, teria deixado um caçador realmente assustado. Aquilo era mais que podia aguentar.

Foi engatinhando até a gaveta, onde guardava coisas especiais e necessárias em determinadas situações. E aquela situação de desespero, solidão e fracasso, era uma dessas situações. Abriu a gaveta desesperado. Procurou pelo fundo falso. Achou e abriu-o. Encontrou um presente macabro. Um revólver .38. A arma que seu irmão carregava quando foi morto. Ficou admirado ao ver aquele instrumento de metal niquelado, fabricado pelo homem, para acabar com a vida do homem. Lembrou que a última vez que viu tal arma foi justamente quando achou o corpo do ser humano, num estado próximo a morte. Lembrou também de ver o sofrimento do seu irmão ao tentar respirar para falar com ele. As últimas falas da vida de um homem. Estava delirando. Mas, em um dos poucos instantes de lucidez que teve, disse para o irmão manter aquele objeto consigo. E para usá-lo melhor do que ele usou. Johnny, no calor do momento, diante de toda a tristeza, prometeu que usaria numa situação mais oportuna. Estava esperando que o irmão pedisse vingança, para que pudesse se vingar dos algozes do irmão. Mas tal pedido não veio. Pelo contrário, veio justamente o oposto. “Johnny-boy, viva tua vida, cara. Não faça a merda que fiz. Faça o que você quiser, mas não faça merda com tua vida. Me promete?” Naquele momento, onde não podia controlar suas glândulas lacrimais e toda a sua emoção, prometeu. Mas tal promessa não fora definitiva. Superado a morte do seu irmão, já havia esquecido o que prometera antes.

Mas sabia que aquele momento era o momento oportuno. Pegou a arma e a pôs em sua têmpora. Hesitou, por alguns instantes em puxar o gatilho. Enquanto vacilava, lembrava-se de toda sua vida. Todos os percalços que vivera até então. A dificuldade de nascer negro e pobre numa sociedade racista. Os tempos difíceis com sua família e a vida com pouco dinheiro. A lenta queda de sua família, de um membro por vez. A saída de casa. A prisão. A carreira sem sentido e vazia. Lembrou-se também dos bons momentos que viveram em família. Daqueles momentos que tudo que ele fazia tinha um sentido. Mas, infelizmente, suas lembranças boas paravam por aí. Jamais amou alguém e fora amado de verdade. Não tinha uma família constituída, como alguns amigos seus tinham. Amigos? Bem, não tinha amigos, a bem da verdade. Tinha sim, colegas de profissão e conhecidos. Mas amigos, amigos mesmo, não tinha. Amigos verdadeiros. Nada. Toda sua vida, fora um vazio imenso, perfeitamente preenchido. Agora podia ver. Ficava claro. Estava tudo claro. Era e sempre foi tudo claro, apenas ele que não podia ver ou fazia questão de não ver. Agora enxergava. Naquele instante de indecisão, onde o seu cérebro armou-se dos óculos da verdade, enxergava pela primeira vez. Lembrou-se de uma frase que um pregador de rua falou uma vez “qual o sentido da vida?”. Naquele momento, sabia que a vida era apenas um fato biológico. Bebês nascem porque assim é a natureza. Alguns morrem, outros vêm ao mundo com problemas concepcionais. Mas, em teoria, nascem. Sentido filosófico? Não havia nenhum. A pessoa faz o que ela quer ou gosta de fazer.

Então, uma voz interna eclodiu na sua cabeça. “Hey, Johnny-boy, puxe o gatilho”. Sussurrou dizendo que não poderia fazê-lo. Então, a voz continou. “Qual é, cara? será absurdamente rápido. você não sentirá dor nenhuma...” Queria argumentar, mas a voz, que até então era tranquilo, tornou-se pesada, autoritária e imperativa. “AGORA”, explodiu como em um grito. Assustado, não tem opção. Puxa o gatilho.

Click.

A arma despenca no chão.

O corpo desfalecido do ator cai violentamente ao chão.

Fim?

Não...

Não?!

Não.

Não!

Agora não!

A arma estava descarregada. E assim sempre esteve. Soube por intermédio de sua mãe que seu irmão JAMAIS pretendera matar alguém. Ela só queria ascender na sociedade e na comunidade. Ele só queria seu lugar ao sol. Todos só querem seu lugar ao sol. Johnny queria o lugar ao sol dele. E acordou, percebendo isso. Feliz, por ter vencido a morte, sentiu-se disposto a enfrentar o fardo da vida. E que bom que assim estava. Minutos depois do ocorrido, recebeu uma ligação.

- Sr. Smith? – pergunta uma voz feminina no telefone.

- Sim? – responde, querendo saber quem ligava.

- Sr. Smith, aqui quem fala é Kathleeen Connor, da galeria de Norfolk. Ficamos sabendo que o sr. é um exímio pintor, inclusive, temos fotos de uma das suas obras, “feriado”. Queremos saber se o sr. possui interesse em realizar uma exposição.

Johnny não sabia o que dizer. Depois de todo aquilo gerado por uma vida frustrada e uma experiência de quase morte, aquela ligação foi a melhor coisa que aconteceu a vida dele. Como um bebê, ao ter seu cordão umbilical cortado e ver o mundo extra-uterino, dito real, pela primeira vez. Finalmente ele poderia ser reconhecido pelo que ele era realmente. Todas essas décadas perdidas, gastas numa mentira, toda essa neura que viveu nele por esses anos, finalmente, desapareciam. Parece que além de continuar vivendo, ele havia nascido novamente. E com um pouco mais de sorte dessa vez. E o que o futuro reservava pra Johnny? Bem, o futuro é uma icógnita. É uma incerteza. E como diria um poeta “O futuro nos pertence”.