KAFKA A BARATA VOADORA
KAFKA A BARATA VOADORA
Desde quando Kafka criou asas?...
Antes vivia de rastros, dissimulando-se nas sombras, correndo pelos cantos, à socapa, porém ao alcance dos meus chinelos dilacerantes e de minha vassoura vingadora.
Hoje voa, estonteada e louca, acima de minha cabeça, frente aos meus olhos assombrados, impassível aos meus gritos que assustam a vizinhança e desassossega o sono dos que dormem.
Eu podia reconhecer sua presença pelos excrementos que deixava; no silêncio da noite reconhecia o ruído áspero do seu caminhar e a buscava, impiedosamente, com a bomba de inseticidas nos seus recônditos covis.
Mas, Kafka, a barata, criou asas...
Vindo não sei de onde, esvoaça impávida, indiferente ao meu pânico; pousa impunemente nas telas a óleo: marinhas, palafitas e madonas à Modigliani, onde não a posso atacar sem prejuízo.
O pavor que me acomete me tolda o entendimento e não sei me defender dessa inimiga alada que, desavisadamente, surge das sombras, enorme, assustadora.
A presença de Kafka se tornou imprevisível desde esse seu voejar insólito. As evidências de sua presença, antes tão práticas, quando ela era um inseto terrestre, provavelmente deixarão de existir, inseto alado que se tornou. Hoje, Kafka pode inesperadamente surpreender-me, afrontar-me, desafiar-me, encontrando-me totalmente inerme.
E Kafka se tornou como o destino: incerta e improvável. E, como a ele, o destino, para sondá-la consultarei os búzios, os tarôs e as varetas premonitórias do I-Ching.