O Motor

A noite estava mais escura e chuvosa para Bernardo do que para as outras pessoas, os olhos dele estavam confusos e sua cabeça girava como uma roda gigante. Em passos lentos ele caminhou até o carro e ao entrar tentou por varias vezes a chave na ignição, porém não obteve sucesso e isso o deixou frustrado.

Bernardo viu embassadamente uma foto que sempre ficava no porta documento. Foi um dia memorável e feliz na praia, com ele, seu irmão e sua ex esposa. Lembrou-se que desde a juventude aquele trio era forte e inseparável, mas os três separaram-se após o acidente.

As lembranças do acidente fizeram Bernardo transpirar de forma excessiva como as gotas de chuva que caiam sob o seu carro, ele queria gritar e voltar no tempo para tentar consertar apenas aquilo, pois o resto faria tudo de novo, já era escravo de um fardo que era forte demais para te derrubar. Uma angústia repentina e desumana o fez perder as esperanças. Ele era culpado pela morte de Kevin, o próprio irmão. Com isso feito a vida de Bernardo piorou e sair sozinho todos os dias depois do seu trabalho à procura daquele suporte que supostamente era fixo e não te abandonaria, mas esse suporte o afastou de tudo aquilo que te acompanhava.

Quando finalmente ligou o carro à reviravolta da noite chegou a sua mente e o deixou irritado, já que foi retirado a força do estabelecimento que mais frequentava. Enquanto dirigia, um misto de sentimentos o invadiu e fez seu coração acelerar. Rapidamente chegou a sua casa, mas em vez de parar o carro ele o acelerou fazendo o automóvel invadir a garagem. Bernardo desligou, abriu a porta, escorregou na calçada molhada e tomado pela raiva chutou o carro, depois disso ele finalmente entrou em casa. Não suportando o estômago foi até a cozinha e tomou o remédio para gastrite, mas vomitou na mesa, que estava cheia de recipientes feitos de vidro.

Bernardo já não limpava mais a casa, pois sabia que nada iria adiantar, toda sua energia tinha sumido. A sala estava suja de lama e com espaços preenchidos por saudades, assim como seu próprio quarto, que além da sujeira e da bagunça de suas roupas ainda possuíam um toque peculiar, que era o aroma de bala de hortelã, até porque ele precisava muito daqueles doces para começar o inferno do seu dia. O corpo sujo e desalinhado despencou na cama, girou por vários ângulos para apenas conseguir um nível de conforto suportável para mais um dia em casa parado, então depois de achar a medida certa do sono ele dormiu rapidamente com o mau hálito que já era de costume. A noite seguiu como de costume, com a rua vazia, a chuva fraca e as pessoas dormindo com algum tipo de disposição. Não era de se esperar, que uma leve ventania iria assolar a escuridão e invadir o quarto de alguém que não era desejável nem suportável em qualquer lugar.

Sem nenhuma palavra de confiança, sem o ecoar de sorrisos nos corredores e nos cômodos da casa o fim da noite passou rápido. A janela estava aberta, porém isso não foi o suficiente para refrescar Bernardo, ele estava vestido e amassado como um cão sem nenhum dono para segurar a sua mão e guiar toda sua alegria. Não apenas era o seu hálito que fedia, mas também o seu quarto imundo. O quarto frio era eminente, porém o mofo provocava um calor que fez piorar o suor do homem.

Amanheceu e a campainha tocou sem parar na casa de Bernardo. O corpo despertou inesperado e caminhou a passos lentos e trôpegos até a maçaneta da porta, que parecia longe demais para aquele homem destruído pelo seu suposto suporte. A dor de cabeça era forte e a cada toque insistente ela piorava. Seus olhos estavam vermelhos e uma das chaves já estava na fechadura por garantia de não demorar. Ao abrir a porta, a surpresa o deixou com os olhos mais abertos.

-Bom dia. Posso entrar?

-Essa sempre será sua casa. – disse Bernardo

Simone viu o rosto cansado de Bernardo, assim como leves espasmos musculares, a testa suada, sua barba crescida e suas olheiras sobressaltadas. A casa suja e seu cheiro é que eram as novidades, o que deixou os sentidos e o estômago da mulher desordenados.

-Simone, eu adoraria te oferecer algo – Bernardo começou a gaguejar – mas...

-Mas eu não estou com cara de quem queira ficar alcoolizada a essa hora da manhã, eu já sei que aqui só tem álcool – disse Simone de forma clara e com o toque de humor que lhe fazia um alguém especial

-Se veio aqui para doar sermão, desculpe-me, mas tenho outros planos para um dia de sábado com folga.

-Eu já sei como são os seus dias, mas em resumo, vim te entregar essa carta, ela estava comigo desde aquele dia do acidente, mas depois de anos só tive coragem de abrir hoje, é uma carta do dia dos amigos. Sei que você sempre sofreu por causa da bebida, já que sempre presenciava cenas de seu pai bêbado. Você cresceu ao redor de bares, provocou um acidente, foi preso e perdeu a minha companhia diária – ela parou, respirou e continuou – a Justiça já fez você pagar e te perdoou, mas eu vim aqui para te perdoar.

Bernardo abriu bem os olhos e perguntou: - Você quer voltar para casa?

-Não é isso, quero dizer que você tem uma amiga de volta. Quero ser um suporte para sua vida. Olhe só para essa ressaca, ninguém quer te ajudar porque todo mundo tem pena e raiva da sua alma amarga, mas depois de anos eu percebi que o dever de uma amiga é ajudar e proteger.

-Um lindo discurso, obrigado, mas estou de folga hoje e só preciso de cervejas para passar o dia.

-Viu é disso que estou falando, mas parece que não vai adiantar. Eu já estou indo, porém saiba que irei te visitar muito até você encontrar ajuda.

-Minha família já me deixou, não preciso de mais ninguém.

Simone se dirigiu até a porta e olhou para trás.

-Por favor, se aceite. Uma última coisa. Você realmente acha que a vida das pessoas merecem serem jogadas ao lixo?

Sozinho Bernardo sentou-se ao sofá e assim abriu a carta.

Caros amigos,

Vocês dois sabem que não sou bom em palavras, por isso vou resumir. De início quero dizer que estou presenteando-os com uma carta porque a grana sumiu neste mês, mas isso é apenas um símbolo fortificando nossa amizade de anos. Eu queria agradecer aos dois por todo esse tempo que permanecemos juntos e nada pode quebrar isso. Eu sei que como um casal normal vocês brigam, entretanto basta os olhos dos dois me verem que a alegria volta e as brigas acabam.

Ninguém sabe, mas semana que vem estarei indo passar uma temporada em Paris para continuar minhas pesquisas sobre os animais da pré-história. Perto ou longe nossa amizade nunca é desgastada e vai sobreviver a esses quilômetros de distância. Quero vocês passando férias comigo e desejo que nada distancie esse casal.

O dia é de sol e estou aproveitando que vocês estão tomando banho de mar para escrever essa lembrança do dia dos amigos, agora vou terminar e entregar para Simone, por favor, Miss Simpatia espero que você abra só quando chegar a sua casa e não seja egoísta, divida ela com o Bernardo.

Feliz dia dos Amigos!

P.S. Amo muito vocês.

Um forte abraço. Mister Modesto, também conhecido como Kevin

Os olhos de Bernardo já estavam soltando lágrimas e sem perceber ele estava mergulhado em seus pensamentos.

Um ano se passou, depois de duas faltas nas reuniões do grupo dos Alcoólicos Anônimos, Simone fez questão de levar Bernardo para mais um dia de batalha.

-Você é incrível, mas não sei se consigo, estou desestimulado. – disse Bernardo assim que chegaram a uma casa feita de estilo Barroco.

-Não irei permitir isso, ninguém disse que seria fácil. Sua vida está evoluindo. Sua face já está melhor, assim como sua casa e até no emprego você ganhou uma promoção.

-Como assim? Ainda estou no mesmo cargo.

-Esqueça que te contei isso. Era uma surpresa para próxima semana. Enfim, sua vida já está melhor e basta se olhar no espelho para observar isso.

-Só falta você se casar comigo outra vez.

-Vamos apagar essa parte também Mister Macho Alfa. Precisamos de muita calma, estou voltando para nossa vida amorosa e dessa vez vai ser sob meu comando.

-Não vamos discutir agora. Não num dia legal como o de hoje.

Enquanto os dois caminhavam pelo corredor daquela casa o silencio era notório e estranho. Assim que Bernardo abriu a porta da grande sala onde aconteciam as reuniões do AA uma exaltação aconteceu.

-Surpresa! – gritaram todos e continuaram cantando com a tradicional música de aniversário

Uma grande festa estava preparada para ele, mas a maior alegria daquele homem recomposto foi ver a sua família presente: irmãos, sobrinhos, primos, tios, avó e sua mãe. Memórias entornaram a sua mente e fez ele sentir alegria e vergonha. Com um abraço caloroso ele cumprimento a todos.

A vergonha de Bernardo era iminente, contudo era preciso ele fazer a coisa certa e assim fechar os 12 passos da recuperação que o grupo propõe. Então ele olhou para toda a organização, as pessoas e lembrou-se do irmão como uma memória viva e presente, sempre por perto para perdoar e auxiliar. Bernardo respirou fundo e começou a falar.

-Eu fico imensamente grato a todos vocês por essa festa e fico envergonhado por encontrar minha família, afinal fiz todos sofrerem pela perda de uma vida. Não foi nada fácil sair do lixo e retornar ao luxo, não referente a dinheiro e sim ter o privilégio de ganhar os sentimentos. Saber o real valor que cada um tem. Eu só tenho a agradecer ao acompanhamento dos meus colegas de reuniões e a uma amiga/namorada, chamada Simone, que voltou a frequentar os meus dias com sua energia e me fazer perceber o quanto temos de tempo. Obrigado também ao meu irmão de sangue e amigo Kevin, onde quer que você esteja, saiba que eu também te amo, suas palavras e presença salvaram-me da desmotivação. Eu estou limpo há seis meses, nove dias e deixe-me ver - olhou para seu relógio- treze horas, vou continuar assim, então família, será que estou perdoado?

-Nós viemos aqui para te perdoar pessoalmente e para pedir o seu perdão por nos afastarmos do seu dia-a-dia. É necessário o apoio de todos para a vitória contra o álcool ou contra qualquer leão que faça perdemos a cabeça. – disse a mãe dele

Então com lágrimas nos olhos, todos os desesperos dele sumiram. Ele deu um forte abraço na mãe que sempre rezava e pedia desculpas em silêncio por se afastar dele por se sentir envergonhada. Depois Bernardo abraçou Simone, aquela que te segurou a mão para sair de um buraco finito. Cada pessoa fazia parte de sua vitória e ver todos juntos por um bem em união o fez ficar emocionado. Não importa o quão caímos, ou quanto tempo vai levar para aprendermos a viver novamente, o importante é ir de forma lenta e calma sempre pensando no lado bom que a vida tem a oferecer, sem vícios, sem mágoas e prontos para fazer o bem individual e comunitário. Bernardo ganhou de volta a família e os amigos, então isso fez com que ele ganhasse o total despertar para o seu tempo.

Matheus Andrade de Moraes
Enviado por Matheus Andrade de Moraes em 11/06/2014
Reeditado em 01/02/2015
Código do texto: T4841533
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.