OS GATOS PARDOS

À noite todos os gatos são pardos.

Quando a porta de vidro deslizou fazendo aquele ruído característico, cabeças sincronizadas se viraram, curiosas. As mulheres atentas, os homens extasiados. A nova cliente que já era esperada por todos, enfim dava o ar da graça. E realmente a moça era muito bonita. Embora seja certo de que a expectativa é a grande filha da puta da história, a beleza daquela senhorita superou acima do esperado.

Ela, trajando um micro vestido vermelho, propositalmente bem curto acima dos joelhos, deixava à mostra as bem torneadas coxas e pernas, delineadas por uma provocante meia cor da pele, como naqueles anúncios de revistas. A boca sensualmente insinuou um sorriso para os homens já hipnotizados, reféns do batom propositalmente vermelho-pecado. As mulheres, lançando-lhe um olhar à egípcia, desdenhavam da ofuscante beleza da moçoila.

O chefe visivelmente nervoso e ao mesmo tempo mantendo a compostura de um homem bem casado, censurou a todos com um olhar reprovador, principalmente para os machos afoitos, bem no estilo de Iracebeth, a Rainha de Copas: "cabeças rolarão"!

A partir daqui, a história toma um outro rumo. Não se sabe ao certo o que aconteceu logo após a visita daquela cliente. Tudo era apenas especulações. Dizia-se que o chefe fora fisgado pela beleza da moça e que por causa dela afundou na mais profunda miséria humana, destruindo um sólido casamento e aplicando um vultoso desfalque na empresa, sendo sumariamente exonerado por justa causa.

A cliente ficou um bom par de horas na sala do chefe e perto das dezenove horas saíram da sala, a título de jantarem juntos, no intuito meramente comercial, para tratar de negócios. A secretária ainda na porta do elevador, lembrou ao chefe que ele teria no dia seguinte, uma importante reunião com a holding da empresa e que o voo para São Paulo estava marcado pontualmente para as oito horas da manhã. O chefe a tranquilizou, dizendo que estaria no aeroporto bem antes disso.

Depois do suposto jantar de negócios, o chefe e a cliente saíram para um barzinho somente com o intuito de espairecer e jogar conversa fora, sem maiores consequências, afinal ele estava cônscio de que deveria estar presente na reunião da holding em São Paulo, no dia seguinte.

Depois do barzinho, a situação fugiu do controle do casal, que tomados pelo sabor adocicado dos espumantes, alucinados pela embriaguês dos notívagos, encontraram-se febril e voluptuosamente numa cama de casal no apartamento da concupiscente cliente. Sabe-se lá o que fizeram a noite inteira.

O homem acordou atordoado pela ressaca devastadora. Já passava das onze horas da manhã e desesperado, lamentou profundamente pela sua ausência na reunião em São Paulo. Aliás, a reunião já era! Seria preciso uma desculpa muito bem elaborada para justificar tamanha falha. Na verdade nenhuma justificativa seria suficientemente aceitável. O aparelho celular tocava como um louco.

Procurou pela moça. O vestido vermelho tentador e as sensuais meias cor da pele estavam jogadas sobre uma cadeira. Olhou ao redor e estranhou que o quarto mais parecia um quarto de hospital. Viu muitos equipamentos hospitalares, um suporte para soro ao lado da cama e sentiu um leve odor de medicamentos, como num ambulatório de hospital.

Aturdido, mas uma vez procurou pela moça e a encontrou no banheiro. Estava nua, de costas. Ele pôde ver a pele flácida das pernas e das coxas, agora sem as lascivas meias. Observou também, ainda, alguns hematomas e cicatrizes cirúrgicas nas costas. Para piorar ainda aquele terrível pesadelo, percebeu uma considerável quantidade de medicamentos sobre uma mesinha no canto. Atônito e agora assustado ainda pôde ler o festival de rótulos: abacavir, didanosina, estavudina, lamivudina, tenofovir, zidovudina, efavirenz, nevirapina e etravirina. Sobre a mesa viu também uma pilha de exames laboratoriais. Em um misto de curiosidade e de pavor, leu na etiqueta em letras vermelhas: paciente HIV positivo.

Abriu a janela do quarto e a tarde principiava-se bela sobre a cidade..