Retalhos

A luz solar penetra as cortinas, mas Isabel já havia acordado. Aos 83 anos, em estado terminal, caminha com dificuldades e já não diz uma palavra há dois anos. Mário, seu esposo, tem a mesma idade, fez o café da manhã novamente como faz todos os dias há dez anos.

-Bom dia amor. Está um lindo dia aqui no Eldorado, nossa enfermeira acabou de voltar com as compras – disse o velho – o tempo está parecido com o dia em que nos conhecemos, lembra? Aos oito anos, no parque do Ibirapuera, na distração de uma corrida acabamos no chão e brigamos muito. Quem diria que doze anos depois nos apaixonaríamos no mesmo parque.

-Bom dia senhores – disse Rosana assim que chegou

-Brigou mais uma vez com ele? – perguntou Mário

-O senhor conhece-me muito bem. Eu vi o novo porta retrato, vocês têm uma linda família.

-Fazem anos que não os vejo, mas não saia do assunto. Já disse que você deveria planejar menos. Sabe, há 20 anos Isabel se separou de mim, estávamos velhos demais para alguém sair de casa, então aproveitei para reconquistá-la e me dediquei todos os dias. Fiz tudo ao meu alcance, pois é obvio que estávamos mais lentos. Pelos vários planejamentos nunca existiu uma segunda experiência fora desta cidade.

O senhor se deixou interromper. Isabel estava com as têmporas grandes.

Rosana entrava no quarto no inicio das tardes, sempre via Isabel deitada naquela cama de hospital público e o Sr.Mário contando-lhe histórias. O tempo não foi bom com aquele casal e acabou apagando rápido com a beleza dos dois. Cada vez que Mário olhava para sua esposa lembrava-se de todos os momentos que perdeu de conquistar na juventude. Todos os dias de trabalho ofuscaram a felicidade do casal e isso também trouxe o afastamento do pai com seus filhos que apenas buscavam mais atenção.

Em uma manhã o Dr.Soares disse que a idosa não tivera outro derrame, mas precisava mantê-la internada para controlar a hipertensão.

Depois de dias com muitas reminiscências, Isabel estava melhor o suficiente para seu cônjuge e sua enfermeira colocarem um plano em prática. Escondidos, retiraram à senhora do hospital e saíram de táxi.

Assim que chegaram a um local frequentado Rosana deixou os dois sozinhos como foi combinado no plano.

-Tem certeza de que ficarão bem? – perguntou Rosana

Era uma tarde ensolarada e nostálgica, após deixar o casal, Rosana foi para casa, assim que chegou viu os filhos, recordou do porta retrato e deixou-se levar pelas indagações de toda uma vida, pois ela precisava se reencontrar.

-Luís? – indagou a mulher

-Sim?! Estou na cozinha

Ela correu, o abraçou e disse: - Perdoe-me. Eu já joguei minha agenda, não posso viver sem você – o telefone dele toca

-Alô! Secretária?! Em casa sou apenas Luís, o Dr.Soares fica no consultório e a partir de hoje tenho minha mulher de volta – desligou o telefone e como se fosse à primeira vez beijou a esposa.

Com os conselhos do senhor a enfermeira quebrou o ciclo vicioso do excesso de atividades e agora com a diferença de saber a necessidade das coisas. A partir daquele momento Rosana passou a honrar todos os juramentos do matrimônio e da família.

O sol, naquele fim de tarde, brilhava fracamente. Crianças brincavam no parque do Ibirapuera e casais estavam sentados na grama fazendo promessas de amor com planos para o futuro. Tudo estava calmo e aquele casal de idosos estava fazendo mais um momento na vida deles. Poucas realizações haviam passado ao longo dos anos, porém a pouca energia dos dois fazia com que isso fosse esquecido e apagado, nada mais importava do que a presença atenciosa de um com o outro.

Sentados no gramado Mário disse: - Ah! De volta ao Ibirapuera. Nossos haveres já foram repassados, mas me entristeço porque não repassei meus aprendizados àqueles do nosso sangue. Sabe Isabel, eu te amo.

Com dificuldades a esposa disse: - Também te amo Mário.

Mário não pôde acreditar no que escutou, então os dois apenas beijaram-se. Os restos de raios solares bateram nas faces flácidas e enrugadas. O vento ao redor daqueles corpos abraçados uniu memórias, aflições e superações. A certeza estava estampada no rosto de cada um, mas nem por isso eles tentaram fugir. Aquele era um dos poucos momentos entre Mário e Isabel, então juntas suas almas entregaram-se ao vento e a eternidade.

Matheus Andrade de Moraes
Enviado por Matheus Andrade de Moraes em 18/05/2014
Reeditado em 01/02/2015
Código do texto: T4811542
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