Como diz meu pai
Eu moro onde o sol custa a chegar e durmo onde a noite quase não vem; isso porque minha casa se encontra atrás da proeminente estação televisiva do canal 19, o que não me traz vantagem alguma. Alias, traz-me apenas desesperos, sim, dois. O primeiro porque, quando dia, o prédio de andares exagerados para um canal de pouca programação cobre-me completamente o sol que aquece a vida, e isso é inaceitável. Como pode um homem viver sem esse direito fundamental? O sol, como diz meu pai, é a maior fonte de bondade que o ser humano pode partilhar. E eu, infelizmente, não o tenho no pequeno conforto do meu lar. Quando o quero, tenho que sair de casa e o buscar em outro lugar, o que, pensando bem, é um sacrifício ousado mas proporcional à necessidade.
E o segundo desespero, infelizmente no mesmo dia, é quando a noite, pelo menos no relógio, chega. Às 18:00h todas as luzes da estação do canal 19 são postas à brilhar e a interromper a noite. São tantas luzes que, mais do que estar num dia, penso estar numa parte céu; uma parte terrível, por sinal. A claridade hiperbólica daquelas luzes é tão violenta que nem a mais espessa cortina é capaz de detê-la. Até as pálpebras lamentam ao cérebro sua impotência. E eu sofro. Sofro porque não consigo dormir, e por não dormir, sofro por não conseguir sonhar. E como diz meu pai, a noite foi feita para duas coisas apenas: descansar e sonhar.
Antes de me mudar para essa casinha escondida, havia percorrido toda a cidade a procura de um bom lugar; e, pelo menos de vista, até encontrei muitos. Mas por não ter um predecessor de bolsos cheios, e por eu próprio também não os ter, a única morada que me coube na cidade foi a miserável casinha que já mencionei. Então não tive escolha, habitei-a. E a partir daí passei a viver entre quatro paredes literalmente. Onde eu durmo também faço minhas refeições e, inconvenientemente, também as expulso de mim. Não é nada agradável, mas com o passar dos anos quase que já me parece natural. Ser pobre é uma desgraça, sempre diz meu pai.
De onde eu vim a terra não é boa, mas nela construimos, eu e meu pai, uma baita casa, humilde, mas ainda assim muito grande e espaçosa. Há cinco cômodos: dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro. Para nós dois quase que passa de uma mansão, de tão grande que é. Nela eu tinha paz e conforto. Mas de repente a vida nessa terra ficou muito difícil, pesada, principalmente para mim, e então eu decidi sair; meu pai ficou. Hoje, quando olho para trás, lamento amargamente o que deixei para viver numa terra estranha. E para piorar, tenho que viver eternamente com uma frase do meu pai a ecoar na minha cabeça: a pior coisa é o homem não pensar bem antes de agir.
Hoje eu moro sozinho, e mal. Aliás, não tão só – mas o mal continua do mesmo tanto –, há também um gato rabugento, que não me deixa nunca. Quando acordo, lá está ele na porta, pedindo algo para comer; e quando vou me deitar, lá está ele novamente, pedindo um boa noite e mais algum prato para beliscar. Sempre digo a ele, claro, cuidadosamente, para não ferir seus sentimentos, que de forma alguma posso adotá-lo. E meu discurso é sempre muito racional: casa pequena, pouca comida...Mas o animal sempre rejeita minha objeção, e no dia seguinte lá está ele de novo à minha porta. Por isso acabo por dizer que, na verdade, na pequena casinha onde moro vive eu e um gato. Claro, contra a minha vontade, mas o que eu posso fazer? Meu pai sempre diz que gato é assim mesmo, quando gruda, só Deus na causa. Eu odeio esse gato.
Mas apesar de toda minha peleja com a maldita estação de televisão, noite e dia, e com o gato rabugento que não me deixa nunca e também com a pequena casa que mal me cabe em pé ou deitado e com o fato de ter que fazer minhas necessidades fisiológicas no que tenho por quarto, sala e cozinha e também por outros fatos que omiti, tirando tudo isso até que me vejo como um baita homem de sorte. Olhando por uma ótica diferente, tenho um pai muito especial – infelizmente não tenho mais a mãe –, e é tão especial que me vale toda a riqueza possível do mundo. E é a esse grande homem que dedico esse conto, sim, ao meu pai, que me inspirou, dedico e entrego esse escrito. E tenho certeza de que vai gostar. Mas também creio que terá uma queixa ou duas a fazer. Isso porque, como diz ele, a pior coisa é ter um filho que fala ou escreve mentiras.