O Ceifador e Eu
Existem dias que seria melhor que não acontecessem, entretanto, pode ser apenas a primeira impressão. Vejamos, eu poderia dizer que sou escritor, mas o mais adequado é dizer que fui. Não consigo escrever absolutamente nada, faz muito tempo.
Trabalho numa editora, auxiliando na escolha de possíveis livros a serem editados. Encontrei muita coisa boa. O problema é que os critérios do meu chefe não coincidem com os meus. Claro, primeiro o lucro, de preferência alto. Tanto é que livros didáticos de grande tiragem são mandados para impressão na China ou Índia. O tal chefe, na verdade gerente financeiro, é primo de minha mulher e sempre deixa bem claro que só estou empregado devido a um pedido dela. Hoje foi a gota d'água.
Tinha em mãos um precioso livro de poesias, no estilo do Leminski. Pois bem, recomendei sua publicação. O chefete me disse que ninguém compra mais livros de poesias, ou compram muito pouco, logo seria um fracasso e prejuízo na certa.
Tentei argumentar:
- Pense comigo, se você pedir a alguém que lhe cite nomes de grandes autores brasileiros, quase certamente serão citados Drummond, Bandeira, Vinícius de Morais, Ferreira Gullar, por exemplo, todos poetas.
- E daí? Poesia é coisa menor. Não é considerada literatura rentável.
- Quanta besteira! Você já tentou fazer um poema? Eu já. Não consegui é difícil pra caramba.
Neste instante, acabou a paciência do meu interlocutor.
- Lembre-se que você não passa de um fracassado! Não conseguir algo, não é novidade. Só está aqui por causa do pedido da Lia.
Joguei o que tinha nas mãos na cara dele (nem lembrava o que era) e saí batendo a porta.
Fui direto pra casa, encontrando Lia danada da vida comigo. Mal abri a porta foi gritando:
- Perdeu mais um emprego, que beleza! O Roberto me ligou e disse que você o agrediu jogando um grampeador (então era isso!) no seu rosto. Só não perdeu o juízo, porque nunca teve. Com isso, quem continua pagando as contas sou eu! Não aguento mais! Pra mim, chega. Vou me separar de você, seu imprestável!
Essa doeu! Sai de casa, pensando em ir beber num bar. Mudei de ideia e fui para a rodoviária. Tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, com destino à casa do Gustavo, um amigo de infância.
Ao chegar ao Rio, peguei um táxi até Copacabana, onde mora o Gustavo. O problema é que ele é engenheiro de uma empresa petrolífera e viajava constantemente.
- O doutor Gustavo não está, disse o porteiro, não sei quando volta.
Saí em direção à praia, para pensar o que fazer. Andei em direção ao Forte e acabei por sentar num banco próximo daquele com a estátua do poeta Drummond.
- Por causa de um poeta como você, arrumei uma baita confusão, disse olhando para o poeta.
- Falando com a estátua, amigo? Ele raramente responde.
Tomei um baita susto. O dono da voz era um sujeito ligeiramente calvo, usando óculos, que acabara de sentar-se ao meu lado. Logo foi se apresentando:
- Ailton, esse é meu nome. Na verdade era o nome do antigo dono deste corpo, do qual temporariamente me apossei.
Tive um calafrio, apesar do fim de tarde abafado.
- Como assim? Você é algum tipo de maluco?
- Não, sou um Ceifador, Anjo da Morte, Demônio da Morte, Anjo do Abismo, ou qualquer outro nome que queira me atribuir. Prefiro Ceifador.
Fiquei mudo. O sol já estava se pondo. O que deveria ser belo, só piorava o meu estado de espírito. Mas, o instinto de escritor falou mais alto. Segurei a onda.
Perguntou o meu nome, o que com grande dificuldade lhe falei. Minha vontade era sair correndo dali, mas a curiosidade pelo personagem ao meu lado foi maior.
- Você vai me matar? Perguntei, sem saber o porquê de falar aquela idiotice.
- Não, por que? Você quer morrer?
- É claro que não, respondi. Acabei me animado com a maluquice da conversa e perguntei:
- Como você atua? O que você faz?
- Retiro a essência da vida da pessoa, aquilo que chamam alma, e levo até o portal de triagem.
- E o que acontece lá?
- Não sei, só vou até aí. Parto para outra tarefa. Existem muitos como eu.
- Por que parou para conversar comigo?
- Bom, eu tinha tomado emprestado o corpo do Ailton, que faleceu devido a um enfarto. Um camarada meu encaminhou sua alma até o destino e eu resolvi dar uma volta com o corpo, e encontrei você tentando falar com o poeta aí ao lado. Pareceu interessante. Não é todo dia que a gente vê uma coisa dessas.
Eu estava boquiaberto. Não conseguia falar mais nada, apesar de estar curiosíssimo com o tal "Ceifador"
- Vejo que não está acreditando em mim, disse ele. Eu também não acreditaria, mas você sendo escritor deveria. Que falta de imaginação! Levantou-se a foi andando pelo calçadão.
Como ele sabia? Talvez seja mesmo quem disse que é.
- Vou devolver o corpo do Ailton. Desceu para a rua a atirou-se a frente de um caminhão.
Tomei um baita susto e corri ao seu encontro. Juntou muita gente. O corpo jazia no chão. Num dos bolsos da calça do atropelado estava a carteira com os documentos do Ailton, além do endereço. A perícia chegou e eu fui saindo sorrateiramente. Não estava disposto a prestar depoimento sobre o tal Ailton. Não saberia o que dizer.
Ao virar a esquina, saindo do calçadão, tive a impressão de ouvir uma voz que dizia "se cuida, até a próxima".
Tomei um ônibus urbano e comprei uma passagem para São Paulo. Dormi durante a viagem e sonhei com o Ceifador na sua forma tradicional, na figura de um esqueleto com foice e tudo. Disse-me ele:
- Retome sua vida, volte para sua mulher e principalmente, volte a escrever . Agora você já tem uma boa história. Poderá fundar a sua própria editora e publicar os livros que achar melhor. Estou indo visitar seu tio Ernesto, que vai lhe deixar uma grande herança. Voltaremos um dia a nos ver...
Existem dias que seria melhor que não acontecessem, entretanto, pode ser apenas a primeira impressão. Vejamos, eu poderia dizer que sou escritor, mas o mais adequado é dizer que fui. Não consigo escrever absolutamente nada, faz muito tempo.
Trabalho numa editora, auxiliando na escolha de possíveis livros a serem editados. Encontrei muita coisa boa. O problema é que os critérios do meu chefe não coincidem com os meus. Claro, primeiro o lucro, de preferência alto. Tanto é que livros didáticos de grande tiragem são mandados para impressão na China ou Índia. O tal chefe, na verdade gerente financeiro, é primo de minha mulher e sempre deixa bem claro que só estou empregado devido a um pedido dela. Hoje foi a gota d'água.
Tinha em mãos um precioso livro de poesias, no estilo do Leminski. Pois bem, recomendei sua publicação. O chefete me disse que ninguém compra mais livros de poesias, ou compram muito pouco, logo seria um fracasso e prejuízo na certa.
Tentei argumentar:
- Pense comigo, se você pedir a alguém que lhe cite nomes de grandes autores brasileiros, quase certamente serão citados Drummond, Bandeira, Vinícius de Morais, Ferreira Gullar, por exemplo, todos poetas.
- E daí? Poesia é coisa menor. Não é considerada literatura rentável.
- Quanta besteira! Você já tentou fazer um poema? Eu já. Não consegui é difícil pra caramba.
Neste instante, acabou a paciência do meu interlocutor.
- Lembre-se que você não passa de um fracassado! Não conseguir algo, não é novidade. Só está aqui por causa do pedido da Lia.
Joguei o que tinha nas mãos na cara dele (nem lembrava o que era) e saí batendo a porta.
Fui direto pra casa, encontrando Lia danada da vida comigo. Mal abri a porta foi gritando:
- Perdeu mais um emprego, que beleza! O Roberto me ligou e disse que você o agrediu jogando um grampeador (então era isso!) no seu rosto. Só não perdeu o juízo, porque nunca teve. Com isso, quem continua pagando as contas sou eu! Não aguento mais! Pra mim, chega. Vou me separar de você, seu imprestável!
Essa doeu! Sai de casa, pensando em ir beber num bar. Mudei de ideia e fui para a rodoviária. Tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, com destino à casa do Gustavo, um amigo de infância.
Ao chegar ao Rio, peguei um táxi até Copacabana, onde mora o Gustavo. O problema é que ele é engenheiro de uma empresa petrolífera e viajava constantemente.
- O doutor Gustavo não está, disse o porteiro, não sei quando volta.
Saí em direção à praia, para pensar o que fazer. Andei em direção ao Forte e acabei por sentar num banco próximo daquele com a estátua do poeta Drummond.
- Por causa de um poeta como você, arrumei uma baita confusão, disse olhando para o poeta.
- Falando com a estátua, amigo? Ele raramente responde.
Tomei um baita susto. O dono da voz era um sujeito ligeiramente calvo, usando óculos, que acabara de sentar-se ao meu lado. Logo foi se apresentando:
- Ailton, esse é meu nome. Na verdade era o nome do antigo dono deste corpo, do qual temporariamente me apossei.
Tive um calafrio, apesar do fim de tarde abafado.
- Como assim? Você é algum tipo de maluco?
- Não, sou um Ceifador, Anjo da Morte, Demônio da Morte, Anjo do Abismo, ou qualquer outro nome que queira me atribuir. Prefiro Ceifador.
Fiquei mudo. O sol já estava se pondo. O que deveria ser belo, só piorava o meu estado de espírito. Mas, o instinto de escritor falou mais alto. Segurei a onda.
Perguntou o meu nome, o que com grande dificuldade lhe falei. Minha vontade era sair correndo dali, mas a curiosidade pelo personagem ao meu lado foi maior.
- Você vai me matar? Perguntei, sem saber o porquê de falar aquela idiotice.
- Não, por que? Você quer morrer?
- É claro que não, respondi. Acabei me animado com a maluquice da conversa e perguntei:
- Como você atua? O que você faz?
- Retiro a essência da vida da pessoa, aquilo que chamam alma, e levo até o portal de triagem.
- E o que acontece lá?
- Não sei, só vou até aí. Parto para outra tarefa. Existem muitos como eu.
- Por que parou para conversar comigo?
- Bom, eu tinha tomado emprestado o corpo do Ailton, que faleceu devido a um enfarto. Um camarada meu encaminhou sua alma até o destino e eu resolvi dar uma volta com o corpo, e encontrei você tentando falar com o poeta aí ao lado. Pareceu interessante. Não é todo dia que a gente vê uma coisa dessas.
Eu estava boquiaberto. Não conseguia falar mais nada, apesar de estar curiosíssimo com o tal "Ceifador"
- Vejo que não está acreditando em mim, disse ele. Eu também não acreditaria, mas você sendo escritor deveria. Que falta de imaginação! Levantou-se a foi andando pelo calçadão.
Como ele sabia? Talvez seja mesmo quem disse que é.
- Vou devolver o corpo do Ailton. Desceu para a rua a atirou-se a frente de um caminhão.
Tomei um baita susto e corri ao seu encontro. Juntou muita gente. O corpo jazia no chão. Num dos bolsos da calça do atropelado estava a carteira com os documentos do Ailton, além do endereço. A perícia chegou e eu fui saindo sorrateiramente. Não estava disposto a prestar depoimento sobre o tal Ailton. Não saberia o que dizer.
Ao virar a esquina, saindo do calçadão, tive a impressão de ouvir uma voz que dizia "se cuida, até a próxima".
Tomei um ônibus urbano e comprei uma passagem para São Paulo. Dormi durante a viagem e sonhei com o Ceifador na sua forma tradicional, na figura de um esqueleto com foice e tudo. Disse-me ele:
- Retome sua vida, volte para sua mulher e principalmente, volte a escrever . Agora você já tem uma boa história. Poderá fundar a sua própria editora e publicar os livros que achar melhor. Estou indo visitar seu tio Ernesto, que vai lhe deixar uma grande herança. Voltaremos um dia a nos ver...