O Som e a Fúria do Absorvente Negro
“Oi pessoal, bom dia”, disse o rapaz ao entrar no galpão onde os outros componentes da banda o esperavam. Nos bolsos da calça de jeans surrado, uma carteira de plástico, um maço de Marlboro, um isqueiro a gás descartável e uma gaita-de-boca, que ele esperava não ter de usar. Era seu primeiro ensaio com o grupo de rock que havia aceitado seu ingresso havia não mais de uma semana.
Na verdade, ele não tinha muito jeito para cantar —aliás, era incapaz de um agudo. Viu o anúncio da banda —Absorvente Negro— no mural de recados da loja de cds em que costumava comprar seus discos. “Testes na próxima quarta-quarta”, dizia o pequeno cartaz, toscamente impresso num computador, como leiaute dos reclames da década de quarenta. E ele resolveu tirar um tempo pra aparecer, só para se divertir um pouco. Não que tivesse muito mais o que fazer naquela quarta-feira ensolarada e quente (ou nos outros dias da semana, ou em qualquer outro dia do ano)...
Chegou, e com sua voz extremamente grave, cantou “Ruby Tuesday”, dos Stones. Uma fácil, na sua concepção. Sua voz grave e rouca, seu jeito meio bluesman de cantar, agradou a todos. Além disso, a concorrência não era das mais duras; mais ainda: pequena. E assim, sem mais nem menos, foi escolhido e chamado para voltar. Voltou, claro, e foi recebido pelo baixista, um rapazinho pequeno e magricela chamado Ricardo, mas que era conhecido como Camelo, apelido que só fazia sentido no palco. Camelo anunciou a chegada de seu novo vocalista:
— Qual é seu nome mesmo?
— Miro... – respondeu, um tanto tatibitate, o novo cantor do Absorvente Negro – Miro Negrone.
— Gente, este é o Miro. Ele vai cantar com a gente agora.
O guitarrista, de uma loirice oxigenadamente inconfundível, se aproximou sorrindo.
— Prazer, Miguel. Eu não estava no dia do teste, tive uns problemas pra resolver. E não te vi... ouvi... cantando.
— Prazer – Miro respondeu, enquanto os outros integrantes voltavam aos seus instrumentos.
Camelo novamente interveio:
— Ok, Miro, vamos fazer mais uns testes com você, agora com o nosso repertório. Pelo nome da banda, não dá pra você ter uma idéia do que a gente costuma tocar... Mas a gente puxa mais para as antiguinhas... Oldies, como se diz.
— Tudo bem — disse ele. E perguntou — Só queria satisfazer uma curiosidade que tenho: o que aconteceu com o outro cantor?
— Exército, cara! – respondeu Miguel. – Os homens pegaram ele de jeito.
— Ah, que merda! – concluiu Miro, sem ter muito o que dizer. – Mas vamos lá, vamos começar com o quê?
— “Getting Better”… Beatles. É com ela que a gente abre os shows. “I used to get mad at my school”, saca?
Miro sacava. O velho truque de começar o show com uma canção que fizesse o público lembrar da banda. E pensou: “Essa também é fácil... Vou enrolar enquanto der... Enquanto não tiver nada agudo demais...”
Abriu um sorriso, pegou o microfone e esperou o baterista marcar o tempo. Tocaram, e a música fluiu sem grandes dificuldades. Eles não eram ruins, e nisso que Miro deve ter pensado. Afinal, eram anos gastando dinheiro com cds e shows em barzinhos. Já se julgava um bom conhecedor, pelo menos o suficiente para confiar em sua opinião.
Miro já até pensava que poderia dar certo. Que ele finalmente ia ter um motivo para largar o emprego de auxiliar de pizzaiolo que tanto o incomodava e que servia pra ele pagar a faculdade de economia. Ele não desejava aquilo. “Quero ser uma estrela do rock”, pensou. E isso também não era verdade, e ele sabia. Mas foi o suficiente para abrir mais um sorriso e perguntar:
— E agora?
— Sei lá — disse Miguel. Vamos fazer um lance mais antigo.
Miguel não entendia muito de música, mas tocava guitarra direitinho. Camelo, que já conhecia o amigo e sabia o que ele queria dizer, virou e disse ao baterista (que continuava compenetrado em suas baquetas):
— Aquela do Nat.
— Nat? — Perguntou Miro.
Miguel sorriu e explicou:
— “When I Fall in Love”, do Nat King Cole.
“Repertório do Nat King Cole numa bandinha de rock?!”, perguntou-se Miro, pra lá de espantado.
— Ah, tá!
Mais uma canção se foi, e a banda começava a se animar. Tocaram mais umas três e o batera pediu um tempo. Miguel, Miro e Camelo foram até uma mesinha encostada na parede beber água. Enquanto Humberto jogava as baquetas no chão e corria pro banheiro.
— Ele tem a bexiga frouxa – explicava Miguel, irônico – isso acontece umas três vezes em cada show. Mas ele nunca pára no meio da música. Já até mijou nas calças – e riu.
Os dois rapazes riram, e Camelo balançou a cabeça, negativamente.
— Deixa o cara... – ele disse.
Miguel ignorou o amigo e voltou rindo até a sua guitarra. Um a um, os rapazes tomaram seus lugares e o ensaio foi chegando ao fim. Na última canção (“Blue Suede Shoes”, o velho sucesso de Elvis Presley), Miro já estava mais solto, e até dançava, fazendo uma péssima imitação de Elvis.
No dia seguinte, mais ensaios. E assim se passaram duas, três semanas. Até que numa tarde de quarta-feira (sempre quarta-feira), Miro chegou atrasado. Mas, eufórico, foi logo se explicando.
— Foi mal, gente. É que... Um cara que eu conheci na loja... Ele quer que a gente toque no bar dele sábado. Quer ver a gente amanhã. Quer que a gente toque...
— Ta, tá, peraí! – interrompeu Camelo. Como assim? Que cara? Que bar? Quem disse que a gente toca em bar?
— Como assim? – perguntou Miro, intrigado.
— A gente não toca em bar. Quer dizer, a gente nunca tocou. A gente só toca em festas, das escolas, da faculdade e coisa e tal... Amador, cara.
— Mas Camelo – agora era Miguel que se metia na conversa – essa pode ser uma oportunidade legal...
— Eu sei, eu sei... Mas vocês acham que a gente ta pronto? Que a gente tem esse profissionalismo todo?
— Ah, Camelo, deixa disso. Vai ser divertido. Temos que tentar, oras. Qual é o esquema, Miro?
— O cara quer ver a gente tocar amanhã. Ele disse que vem aqui. Se gostar, a gente toca no bar dele sábado. Tem uma outra banda que vai tocar depois, nós vamos abrir pra eles... Se ele gostar...
— Viu, Camelo? Sem responsabilidade... – disse o Miguel – Vamos só abrir o show... Pra quem?
— Netunos. Hip hop. Legal, bem legal a banda. Já vi um show deles antes...
— Tá bom, tá bom... — disse Camelo, ainda meio contrariado. Mas hoje vamos ensaiar dobrado!
E ensaiaram a tarde toda, a noite toda. Já era madrugada quando os Absorventes Negros voltaram para casa.
A quinta-feira chegou, e na hora marcada apareceu o cara, que se apresentou:
— Prazer, Afonso Aranha. Eu tenho dois bares, o “Gel”, lá pras bandas do Parque dos Poderes, e o “Tapiraca”, no Itanhangá... Tava querendo uma banda pra abrir pros Netunos no sábado, lá no “Tapiraca”. Tem que ser estreante. Se pegar bem, se a galera levar na boa, vocês ficam.
Afonso Aranha viu o ensaio, e gostou. Só não gostou muito quando Miguel se despediu dizendo “Falô, seu Afonso Aracnídeo... Até sábado!” Mas eles iam tocar mesmo assim.
No finzinho da semana os integrantes da banda mantiveram o mesmo ritmo intenso de ensaios dos dias anteriores. E eles estavam indo bem; sabiam que não iriam fazer feio. Afinal, eram só uma bandinha de covers “das antigas”, de velhos sucessos, e isso eles sabiam fazer. E bem.
O dia finalmente chegou. Sábado às nove da noite e eles já estavam todos no banheiro transformado em camarim do “Tapiraca”. Vestiam seus terninhos pretos, camisetas também pretas, botinhas de pelica, enquanto Humberto não parava de mijar —coisa de diabético. Às dez e meia foram anunciados e subiram ao palco. Tremiam. A platéia aplaudia sem entusiasmo. Não eram muitos, mas enchiam bem o pequeno salão.
Tocaram como nunca. Miro levava as canções com a segurança de um veterano. Miguel e suas madeixas loiras encantaram as menininhas do lugar. Camelo corria de um lado para o outro, criando uma divertida antítese com o som da banda. E Humberto tocava mais compenetrado que nunca, sem correr para o banheiro, deixando a música fluir de suas baquetas.
No final, todos foram muito aplaudidos. A coxia era tomada por um Afonso Aranha eufórico, entusiasmado mesmo, que contava aos Netunos e a quem mais pudesse ouvir, que o Absorvente Negro, a banda, era estreante e muito promissor. Carlão Bodino, o vocalista da banda atração da noite, ficou sinceramente impressionado, e decidiu congratular os rapazes.
As luzes já tinham se apagado, e o público voltava ao bar. Enquanto cada um recolhia seus instrumentos, Carlão se aproximava do palco, sorrindo, dando tapinhas nas costas e parabenizando os “Absorventes” todos. Quando ia cumprimentar o baterista, que já saía pela lateral, foi tomado por um odor agressivo, nauseabundo, que já inundava todo o palco. Humberto sorria timidamente e lhe estendia a mão —não sem antes olhar fixamente para a palma de sua própria mão—, que Carlão apertou displicentemente enquanto afirmava em brados para o Miguel, ao seu lado:
— Caraca, que cheiro de mijo é esse?!
Realmente, o odor era abominável, asqueroso, mas o Absorvente Negro tinha sido o maior sucesso.