MAUSOLÉU DE ALUGUEL
— Isto é voyeurismo, Altamiro. O pior vício que você poderia ter adquirido.
— Não, não é nada disto que você está pensando. Venha até minha casa e verá com seus próprios olhos. São cenas interessantes. Você poderá aproveitar para seus estudos sobre o comportamento humano.
A contragosto, Zélio aceita o convite do amigo. Altamiro comprara uma luneta e da janela de seu quarto, no segundo andar da casa, observava os arredores, a vizinhança, e, principalmente, a movimentação do Cemitério Municipal.
— Mas só vou com uma condição. Vamos observar apenas o cemitério. Não quero saber de ficar bisbilhotando a intimidade dos seus vizinhos.
— Fica frio, Zélio. Somente em ver o que acontece no cemitério você ficará fascinado. Tem cada situação...
Zélio e Altamiro são colegas de faculdade e procuram meios de passar o tempo, principalmente no período de férias. Altamiro adquirira a luneta há pouco tempo, quando se preparava para passar as férias na casa dos pais. Montara o canudo negro com lentes sobre o tripé em seu quarto e explora as possibilidades de ver, em detalhes e sem ser notado, o que se passa nas redondezas de sua casa. O sobrado se situa na parte mais alta do bairro, a cavaleiro da Rua Pasteur, antiga Ladeira dos Capuchinhos. De sua janela, divisa quintais e varandas, alguns quartos, a rua descendo na direção do centro da cidade, o cemitério e a Praça da Saudade, sombreada, fronteiriça ao cemitério.
— Se você ficar amedrontado com os enterros e com o que ocorre no cemitério, pode se limitar a observar os pássaros nas árvores da praça. — Altamiro provoca o colega. — Afinal, não é todo mundo que se dá bem com as visões da morte.
— Deixa de ser besta, camarada. Ainda esta pra aparecer coisa que me meta medo.
Zélio viu e gostou. O entra-e-sai do campo santo era constante. Enterros aconteciam diariamente, por vezes um pela amanhã e outro à tarde. Aos sábados e domingos, aumentava o número de pessoas em visita aos seus mortos. Nesses dias, as estreitas passagens entre os túmulos eram insuficientes para o trânsito das pessoas, que se encontravam, desviavam-se, algumas pisavam sobre as lápides.
— Observe aquela velhinha. — Altamiro indicava a Zélio uma figura constante no local. — Ela faz uma ronda todas as tardes, até parece fiscal das covas.
— Bem esperta, a velhinha.
Os enterros eram o espetáculo de preferência de Altamiro. Zélio preferia ficar observando as tumbas, os mausoléus, as lápides.
— Veja você o que é a vaidade humana. Daqui dá pra notar como os ricos querem ser poderosos até depois da morte. — Incrédulo, Zélio filosofava sobre a vaidade humana. — Que significam esses mausoléus? Nada. Mas as famílias certamente querem mostrar a sua importância, até mesmo depois que a morte leva seus queridos. Agem como agiam os faraós. Construindo algo imponente, pensam em melhorar as condições de vida na eternidade. Se é que existe vida “do outro lado”.
— É próprio da natureza humana cuidar bem dos mortos, dos antepassados.
— Não vejo a construção de imensos mausoléus como ato de devoção aos que ali estão enterrados. Nunca vi ninguém levar flores ou cuidar daqueles mausoléus. Os túmulos simples e as lápides humildes recebem mais visitas e são mais cuidadas do que os mausoléus.
Zélio tem razão. Os mausoléus das famílias ricas e poderosas da cidade são enormes construções, em estilos bizarros, onde se misturam rococó e art-noveau, anjos convivendo com símbolos pagãos ou ideogramas materialistas. Esquecidos pelas famílias que os construíram e não recebendo nenhum cuidado pela direção do cemitério, estão negros de fuligem e da pátina do tempo.
— Veja só aquele imenso cubo de cimento. As lajes de mármore, escuras, estão lascadas e as ervas-de-muro se dependuram por todos os cantos. Parece mais uma ruína.
— Você está mesmo implicado como esses mausoléus, Zélio. Está ficando mórbido.
Já ia para mais de duas semanas que os moços praticavam o voyeurismo necrófilo. Altamiro olhando o lado humano e Zélio observando a parte material do cemitério. Num entardecer, Zélio chamou a atenção de Altamiro para detalhe.
— Veja, Altamiro, aquele camarada parado ao lado do mausoléu da família Maldonado.
Zélio deixa Altamiro olhar pela luneta.
— O que é que tem?
— Já vi aquele camarada ontem e anteontem, do mesmo jeito. Parece que está esperando alguém. E sempre de tardezinha.
Os dois permanecem vigilantes. Observando. A tarde vai se acabando e as sombras vão se adensando.
— Epa! O cara tá tentando entrar no mausoléu. Veja, tá abrindo a porta. — A constatação é de Altamiro, que passa a luneta ao amigo.
— E mesmo. Tá abrindo. Entrou no mausoléu.
Quando Altamiro volta a olhar, através do aparelho óptico, as sombras já não permitem distinguir com nitidez.
— O cara desapareceu!
— De certo, entrou no mausoléu. — Fixando as lentes do potente visor, tem mais surpresa. — Estou vendo uma luzinha lá dentro. O cara acendeu uma vela. Ou usa uma lanterna.
— Mas o que estará esse cara fazendo a essa hora, lá dentro? O cemitério já fechou.
— Seja o que for, boa coisa não será.
Os dois ajustam o foco, numa tentativa de aproximar ainda mais a cena. Mas a escuridão dificulta a visão.
— Ele apagou a luz. Mas o cara ainda está lá, dentro do cemitério.
Intrigados, os amigos dirigem a atenção para o mausoléu da família Maldonado. Nos próximos dias, à mesma hora, observam o mesmo indivíduo, repetindo o ritual de entrada no mausoléu. Mas as sombras da noite não permitem que eles descubram o motivo de tal invasão.
— Ele está fazendo alguma coisa atrapalhada. Será que está saqueando o mausoléu?
— Se fosse ladrão, não voltaria todas as noites. Não, o cara tem alguma mutreta.
Na tarde de quinta-feira, muito clara, o suspeito chegou mais cedo. Ainda estava bem claro quando os dois vigilantes notaram sua presença, encolhido na reentrância da porta do mausoléu. O movimento do cemitério foi pouco durante a tarde. Nenhum enterro. As salas para os velórios estavam vazias. Os trabalhadores deixaram o trabalho ainda com o sol alto.
— Veja, Altamiro, o bandido nem espera o cemitério ser fechado. Já está lá dentro.
Altamiro olha pelo monóculo.
— Hi, Zélio, o cara está saindo com um saco nas costas!
— Caramba! É ladrão mesmo.
Observam, alternando a vigilância no único visor da luneta.
— Veja, o coveiro está saindo, trancando o cemitério. O camarada vai ficar preso. Ou, então, tem alguma saída secreta.
Lá em baixo, no cemitério, o homem tem uma atitude mais que suspeita. Sai do mausoléu carregando um saco às costas, fechando a porta do sepulcro. Olha para todos os lados, e, principalmente, na direção do portão de entrada do cemitério. Demora-se um pouco, esperando, talvez, que as sombras se adensem, protegendo-o.
— Lá vai ele...— Zélio descreve a caminhada do suspeito. — Na direção do portão!
— Me deixa ver. — Altamiro ajusta a vista direita ao aparelho. — Caramba! Está saindo pelo portão.
Iluminado por uma fraca lâmpada sobre o frontão de metal, o suspeito, saco às costas, sai pelo portão principal do cemitério, como se fosse um dos trabalhadores no cemitério. Retardatário, saindo tranqüilamente.
— Mas... o portão não está trancado? O coveiro passa a corrente e o cadeado.
— Vai ver, o bandido tem uma chave do cadeado.
Naquela noite Altamiro e Zélio discutem o que fazer.
— Amanhã procuraremos a direção do cemitério e contamos tudo o que vimos.
— Mas se o coveiro estiver mancomunado com o bandido, vai avisá-lo. E aí, o suspeito não aparece e passamos por bobos.
— Vamos ter de agir. — Afoito, Zélio quer partir para a ação. — Amanhã de tardezinha, vamos pro cemitério, ficamos escondidos e pegamos o bandido em flagrante.
Na tarde seguinte, vão ao cemitério.
— Melhor a gente entrar separados. Para não dar na vista.
Por conveniência, Altamiro acompanhou um enterro realizado às cinco da tarde. Zélio entrou quando a procissão fúnebre já chegava ao extremo do campo santo. Encontraram-se lá dentro, entre os grossos troncos dos velhos ciprestes. Furtivamente, aproximaram-se do mausoléu e agacharam-se por entre os túmulos. Esperando.
Na boca da noite, eis que aparece o misterioso visitante. Como nas vezes anterior, adentra-se com desenvoltura na cripta, acende uma vela e movimenta-se no seu interior.
— Parece que está colocando coisas dentro do saco. — Altamiro cochicha ao amigo.
— Vamos chegar mais perto.
Aproximam-se. Com cuidado. Surpreendem-se com o que vêem. O alto homem vai de um canto ao outro do pequeno cômodo, tirando daqui e dali alguns pacotes que coloca cuidadosamente dentro de um saco comum.
Chegam bem perto da porta. Na ânsia de descobrir a atividade do estranho personagem, descuidam-se e são notados pelo atarefado homem. Os dois espias ficam mais assustados do que o contraventor. Ele parece maior que é na realidade, as sombras distorcendo tudo. O bandido saca de um punhal e avança na direção dos dois jovens. Altamiro, que estava bem defronte à porta, se esquiva a tempo de se livrar do ataque. Zélio, agilmente dá uma pancada sobre o braço do atacante, e o punhal escapa de sua mão. Simultaneamente, aplica-lhe poderoso soco na nuca. O bandido cai. Agilmente, os dois se atiram sobre o vulto estendido no solo e o imobilizam.
— Filho da mãe! Por pouco não me acerta.
Imobilizado, é erguido e empurrado de volta ao cubículo da tumba. À luz da vela, os dois podem ver amontoados pelos cantos, pacotes e mais pacotes de... bolachas.
— Mas, o que é isso?
— Nada não. É minha mercadoria.
— Mercadoria? Mas qual é a sua, ô meu!
— Sou vendedor na feira-livre, dotô. Num tenho casa, nem nenhum lugar pra deixar minha mercadoria. Toda noite venho aqui pegar uns pacotes pra vender de manhã.
— Mas, como é que você consegue manter aqui este depósito? Alguém do cemitério sabe. Você tem até a chave do portão.
— Num tenho a chave, não, seu dotô. Tenho um trato com o coveiro. Ele deixa o portão do cemitério encostado. Quando eu passo, tranco o cadeado.
— Então o coveiro sabe! Você trabalha pra ele? Qual é a combinação entre vocês dois?
— Num trabalho pra ninguém, não. Pra usar este depósito, pago aluguel pro coveiro.
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte, 3 de setembro de 2002 –
Conto # 177 da Série Milistórias