Lua Sangrenta
João era segurança de uma loja de eletrodomésticos. Vida pacata, comum. Casado com Selma, sem filhos. Ela era estéril. Tudo corria como sempre, até o noticiário de uma das televisões ligadas no mostruário.
- “ Amanhã ocorrerá o eclipse da Lua, num fenômeno conhecido como Lua Sangrenta". Nos nossos estúdios o Professor Fábio da Universidade Paulistana vai nos esclarecer sobre o assunto...
João sentiu o chão sumir. Começou a suar de maneira absurda. Ficou pálido. Quase desmaiou.
Enquanto isso, o professor aparecia no televisor, esclarecendo: “O eclipse lunar total é um fenômeno que acontece quando a Terra, a Lua e o Sol estão em perfeito alinhamento, cobrindo a Lua na sombra da Terra. Quando a Lua entrar na sombra completa da Terra, o planeta vai espalhar a luz vermelha do Sol, que resultará na cor vermelha da Lua.”
O atordoado segurança pensava; “ não pode ser só isso, tem mais coisa, senão não teria acontecido o que aconteceu há dezoito anos.”
Dezoito anos já haviam passado desde a visão da Lua Sangrenta por João. Na época ainda se chamava Sebastião, seu nome de batismo, jamais registrado em cartório, naquele fim de mundo do sertão cearense.
A Lua era sangrenta no céu, assim como a faca em suas mãos, além das roupas que vestia. Sangue do compadre Antônio, seu amigo de infância.
Antônio, filho de comerciante bem sucedido do local, estudava em Fortaleza e voltava sempre nas férias para a pequena cidade onde nascera e crescera. Tomava cachaça com os amigos de infância em especial com Sebastião, agora empregado do pai.
- Amigo Tião, como vão as coisas? Sempre perguntava. Diante do silêncio, continuava: Isto é que é vida, calma sem solavancos...
- Que nada Tonho, eu ainda vou morar em uma cidade grande. Isso aqui não dá futuro pra ninguém.
E, assim passavam a noite, como amigos desde sempre a para sempre, dizia Antônio.
Tudo mudaria após Antônio “crescer os olhos” para Ritinha, prima e pretendida por Tião para casar e sair daquele fim de mundo.
Ritinha moça bonita, de curvas marcantes, enchia os olhos dos rapazes do local. Também queria uma vida melhor. Ajudava a mãe a bordar e vender os trabalhos para os atravessadores que pagavam muito pouco e vendiam muito caro nas cidades do Sul. Sabia do interesse do primo e achava que talvez fosse à única chance de desaparecer dali. Até descobrir o interesse de Antônio.
- Não consigo acreditar que você seja a Ritinha, aquela menina magrinha que corria por aí. Meu Deus, que mulherão você se tornou. Merece vida boa, de princesa. Eu posso lhe dar isso.
- Que é isso moço? Sou moça séria, disse sorrindo, toda envaidecida.
Não demorou muito, Antônio voltou a atacar. Comprou flores e mandou um moleque entregar na casa da moça, juntamente com um cartão identificando-se.
Tião ao ficar sabendo do assédio do amigo sobre sua prima-namorada, foi tirar satisfações:
- Qual é a sua Antônio? Dando em cima de minha namorada.
- Sua namorada, a Ritinha? Juro que não sabia, disse o cínico.
- Olha lá hein, em assuntos assim não existe amizade que resista.
- Qual é Tião, assunto encerrado. Não falo mais com a moça, disse cruzando os dedos. Tenho as mulheres que quiser, na cidade. Não iria me sujar, quer dizer, me meter com mulher de amigo meu...
Não foi o que aconteceu. Antônio tanto insistiu, que Ritinha aceitou seu convite para viajar com ele. Fugiram durante a noite. Ritinha pulou a janela de seu quarto e achou que nunca mais voltaria. Era sua chance. Não sabia o quanto estava enganada.
Antônio logo se cansou de Ritinha. Teve o prazer de “tirar sua virgindade”, mas começou a deixá-la sozinha no hotel e divertir-se nos cabarés com seus amigos e mulheres que apareciam. Ritinha tinha se tornado um estorvo.
- Vou mandar você para casa. Cansei. Entre no ônibus e não me encha mais a paciência. O dinheiro que lhe dei é mais que suficiente para recompensá-la...
Chorando a moça entrou no ônibus e assim continuou por toda a viagem. Ao chegar a sua cidade estava a esperá-la era Tião, com cara de decepcionado e de poucos amigos. Levou-a até a casa de sua mãe, e foi embora. Não falou mais com ela.
Meses depois, Antônio retorna a cidade. Tião foi encontrá-lo para tirar satisfações.
- O que é isso amigo Tião? Só levei a moça porque ela insistiu. Além disso, nem virgem ela era mais. Ela te enganou amigo. Nossa amizade é maior do que isso. Vamos beber e esquecer àquela ingrata. Cachaça apaga qualquer mágoa. Beberam toda a noite. O bar fechou com eles dentro. Saíram abraçados e amaldiçoando todas as mulheres.
Passada a ressaca Tião voltou ao trabalho e por total acaso, escutou Antônio comentar com seu irmão Zeca o que fizera com Ritinha e como tinha enganado também o Tião.
A noite chegou e Antônio não conseguia dormir. Na madrugada, sentado no meio fio observou que a Lua estava diferente, vermelha, sangrenta.
- É um sinal, falou em voz alta. Vou matar o desgraçado!
Foi até seu quarto e pegou a faca que comprara na feira fazia tempo e nunca usara para nada. Colocou na cintura e saiu procurando Antônio.
Encontrou Antônio voltando para casa, meio embriagado.
- Vou lavar a minha honra e a de Ritinha matando você, desgraçado!
- Não faça isso, somos amigos e em seguida Antônio sacou um revólver de pequeno calibre que sempre carregava consigo e atirou.
O tiro não atingiu Tião. Antônio errou o alvo. A faca de Tião não. Rasgou o desafeto do pubis até o peito. As vísceras apareceram. O homem agonizava. Agora a faca atingiu o coração. O sangue era intenso. A Lua também sangrenta a tudo assistia. Parecia aprovar.
Tião reuniu o pouco dinheiro que tinha, conseguiu vender o revólver que era do ex-amigo e fugiu para São Paulo.
Como não tinha registro em cartório conseguiu registrar-se com novo nome ao casar-se com Selma, mulher mais velha que ele e que o aceitou sem mais perguntas.
Agora vinha novamente a Lua Sangrenta. E se ela exigisse que ele matasse novamente? A faca ainda estava a sua espera. Saiu do trabalho e foi para casa pegou-a e saiu para a rua. Matou um desconhecido, sendo imediatamente preso e quase linchado. Ao delegado disse ser culpado, mas era inevitável. A Lua exigiu que assim fosse...