A SANTA TEIMOSA

Os ventos da renovação que varreram o país depois da Segunda Guerra Mundial, chegaram a São Roque da Serra. O retorno glorioso dos pracinhas, a deposição do ditador, a quem chamavam de “Pai dos Pobres”, e as eleições empolgaram a população.

Realizada a eleição e apurados os votos, verificou-se a vitória do doutor Carlos Vieira de Alencastro, engenheiro que jamais exercera a profissão: dedicava-se à administração das fazendas do pai e entrara na política por mero capricho.

— O doutor Carlos é o prefeito de que nossa cidade precisa. — A recomendação do Padre Norberto, o pároco da cidade, feita durante seus sermões nas missas de domingo, foi seguida pelos fiéis e a vitória foi retumbante.

O novo prefeito entrou com vigor na administração da cidade e do município: reformas, limpezas, calçamentos de ruas, um dínamo.

— É um novo Hércules e está fazendo muito mais do que doze trabalhos. — Boanerges Teixeira não lhe poupava elogios nos artigos de fundo do jornal “Nossa Terra”, onde usava o pseudônimo “BoaTex”.

Não demorou muito para que Padre Norberto visitasse o prefeito, a fim de falar a respeito da Igreja do Rosário. A obra colonial fora erigida pelos negros para homenagear os santos da devoção dos congadeiros e celebrar a Festa das Congadas. Situada na parte central da cidade, estava quase defronte à Igreja Matriz de São Roque. O pároco não gostava da velha igreja, que, aliás, tinha sido útil até alguns anos atrás, servindo de igreja matriz provisória, enquanto a nova igreja de São Roque era construída.

— Não faz mais sentido manter a velha igreja. Ela precisa de uma grande reforma e a paróquia não tem dinheiro. Os congadeiros, pobres coitados, não têm recursos pra nada. O jeito é demolir.

— Demolir a Igreja do Rosário? — O prefeito, mesmo sendo dinâmico e atirado, estranhou, a princípio, a proposta do Padre Norberto. Conversa vai, conversa vem, há uma proposta. Em troca da demolição, a prefeitura fica com o terreno onde está a velha igreja.

— É um quarteirão central que pode ser usado para diversas finalidades. A prefeitura faz o que quiser. — No afã de se ver livre dos encargos de manter a velha igreja, e, principalmente, de não divisar o edifício mal conservado e sujo toda vez que, ao celebrar a missa, levantava os olhos e olhava através da porta da nova igreja, o padre faz a oferta final.

— E os santos, os objetos de arte? Qual será o destino deles? — O prefeito quer recusar a proposta do padre, mas não quer partir para uma negativa direta.

— Há muitos fiéis que gostarão de guardar as imagens em suas casas. Ou até levá-las para as capelas e oratórios das fazendas.

— Bem, verei o que posso fazer. — O prefeito não estava nada entusiasmado.

Durante a demolição das grossas paredes, dos nichos laterais e do piso de pedra, foram encontradas três arcas de madeira e ferro, com a madeira podre e os metais enferrujados. Diversos objetos que tinham sido colocados nos enormes baús, provavelmente ex-votos, livros de orações e objetos religiosos, estavam totalmente destruídos pela ação do tempo.

— Que vamos fazer com essas coisas?

A pergunta, feita pelos trabalhadores ao padre, teve resposta reveladora do desinteresse do pároco pelo assunto:

— Queimem tudo.

Amontoadas no centro da nave, agora reduzida a um monte de escombros, os remanescentes podres das arcas foram queimadas, com o devido respeito, pelos operários.

Havia na Igreja do Rosário nichos para os santos da devoção dos negros: São Benedito,São Jerônimo, Santa Catarina, Santa Efigênia, São Domingos, e, naturalmente, Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos ex-escravos, dos quais descendia a população negra da cidade. Antes da demolição, as imagens foram entregues à custódia de diversas famílias católicas, as mais carolas. Nenhuma das imagens ficou com os devotos pretos, apesar de o chefe do terno de congadeiros “União do Campo Alto”, o velho Chico Beiçola, ter pleiteado a guarda de Santa Efigênia, a quem dedicava grande devoção.

— A santinha fica na minha casa, tenho uma salinha que pode virar oratório. O senhor sabe, ela já curou minha filha quando a menina teve tifo e tava desenganada pelo Doutor Martins. A gente tem muita fé.

— Já arranjei pra santinha ficar na casa do Major Elpídio, lá eles vão ter um lugar especial para ela. — Com a fala mansa, Padre Norberto foi conciso. — O senhor sabe, seu Chico, os santos devem ser tratados com todo o respeito e é melhor que fiquem com as famílias que tenham condições de fazer uma capelinha ou um altar. — Despedido sumariamente com essa negativa, Chico Beiçola e todos os congadeiros compreenderam que eles estavam definitivamente privados de cultuar os santos da devoção dos negros. Para eles, ficou claro que a festa dos congadeiros estava com os dias contados.

A demolição foi feita em tempo recorde para a época. Em menos de duas semanas, o edifício de adobe e madeiras de lei veio abaixo. A madeira foi vendida para as serrarias, que desmancharam as largas vigas em táboas, caibros e ripas. O entulho começou a ser retirado na terceira semana. Dois caminhões ajustados pela prefeitura (que não tinha dinheiro para adquirir veículos motorizados) faziam o transporte do material. No sábado, quase tudo fora transportado: restou apenas a mesa do altar, feita em pedra maciça e que precisava ser dinamitada, pois resistira até às poderosas marretadas de Charnata, o trabalhador mais forte da cidade. A área, antes ocupada pelo antigo e respeitável templo, era agora um descampado no centro do qual estava apenas a pedra indestrutível num arremedo de tosco altar.

— Semana que vem o Agenor da Pedreira vai dinamitar a pedra. Ele sabe como estilhaçar o bloco, sem ameaçar as construções ao redor do largo.

No domingo de manhã, a surpresa: sobre a pedra que fora a mesa do altar, bastante lascada pelas pancadas recebidas na tentativa de quebrá-la, aparece a imagem de Santa Efigênia. Impávida, com suas roupas douradas refletindo os primeiros raios de sol da manhã clara, o rosto meigo e doce parecia irradiar uma auréola de luz rosada. As primeiras pessoas que passaram pelo local ficaram assustadas. Eram fieis que se dirigiam para a missa das seis, na Igreja da Matriz.

O pároco, avisado pelas beatas, foi ver.

— Mas como isso é possível? A imagem foi entregue ao major Elpídio e dona Felícia, eu mesmo vi quando eles a colocaram no porão da casa.

— Vamos levá-la de volta para a casa do Major. — Alguém propôs.

— Impossível. O major e dona Felícia estão viajando. — A informação, em vez de tranqüilizar, piorou a situação. Efetivamente, major Elpídio e dona Felícia haviam deixado a cidade: em viagem de repouso, estavam em Poços de Caldas, onde passavam uma estação de águas todos os anos.

Chega o delegado de polícia, Doutor Plutarco Farias.

— Foi algum ladrão que arrombou a casa do major e fez essa brincadeira de mau gosto. — Sem se dar o trabalho de verificar se a casa do major havia sido assaltada, chama o padre para longe dos assistentes.

— Temos que resolver isso logo. Sem alarde, e bem depressa.

Delegado e pároco trataram logo de minimizar o incidente, recolhendo a imagem na cripta da Igreja Matriz, lugar sombrio, sem arejamento. Assim, o conhecimento do fato ficou restrito às poucas pessoas que passaram pelo local àquela hora da manhã. Durante a missa, o pároco pediu aos fiéis que haviam testemunhado a “brincadeira” que guardassem segredo, sob pena de excomunhão.

Tudo inútil. Na manhã seguinte, segunda-feira, as mesmas beatas da missa das seis chegaram com a notícia: de novo a santa estava sobre os escombros da Igreja do Rosário. O Pároco não acredita, vai primeiro à cripta, onde constata a falta da Santa. Dirige-se, vestido com os paramentos de celebrar a missa, ao local e verifica que, de novo, Santa Efigênia fora colocada sobre a pedra que fora a mesa do altar. Os trabalhadores que passaram pelo local viram o “milagre” e a notícia se espalhou como fogo em rastilho de pólvora.

— Não é possível! Alguém está brincando com a Santa.

Expedito, organizou, com o sacristão e as beatas, uma procissão, levando o sacristão a santa sobre sua cabeça. Muitos curiosos assistiram o cortejo. Sobre a pedra aspergiu água-benta, exorcizando o local preferido da santa.

De volta à cripta, o pároco teve o maior cuida em trancar a porta, guardando ele mesmo a chave única nos bolsos de sua batina.

Pela pequena cidade de gente crédula, a notícia das aparições causou comoção. Por isso, naquela mesma hora da segunda aparição da santa, muita gente reuniu-se na praça, a ver Agenor preparando-se para a destruição da pedra.

Com a perícia de muitos anos de experiência, trabalhando na pedreira da fazenda de Oscar Bandeira, Agenor fura finos buracos na pedra, nos quais coloca pólvora.

— Vamos implodir a baita, não tem perigo. Os cacos não voam longe, fica tudo restrito a uns três, quatro metros de distância. — Explica para os assistentes.

Baldado esforço: ou devido à umidade do interior da pedra, ou por qualquer motivo inexplicável, a pedra nem aluiu. Uma, duas, três tentativas, e nada de a pedra se quebrar. Os curiosos ficam impressionados com a resistência do monólito e os mais devotos vêem nisso um aviso.

— Deixa a pedra ficar, é lugar sagrado.

Um zunzunzum foi se espalhando pela cidade, a notícia tornando-se mais e mais impressionante, à medida que ia sendo transmitida de boca em boca. À tardinha, na hora do Ângelus, algumas mulheres e o Zé Nossa Senhora se reuniram em torno da pedra para rezar um terço. No dia seguinte, já uma cerca rústica, erguida não se sabe por quem, delimitava o local de orações. Agenor, impressionado, desistiu de fazer outras tentativas para explodir o “altar”. Padre Norberto proíbe os fiéis de se reunirem em torno da pedra para a oração.

— Isso de proibir é besteira. Quanto mais proibição houver, aí, sim, o povo vai se reunir no Largo do Rosário. — Boanerges Teixeira comentava entre amigos, antes de escrever seus artigos no semanário. — E quanto mais a destruição da pedra for protelada, mais força ganha esse pessoal que está se reunindo ao seu redor para rezar.

O bispo tem notícias do que está ocorrendo em São Roque e convoca Padre Norberto para uma informação precisa.

— Tenho ouvido alguns rumores estranhos. Quero saber exatamente o que está acontecendo na sua paróquia.

— Coisa sem importância, Excelência. Algum engraçadinho tirou a imagem de Santa Efigênia da casa do Major Elpídio e a colocou sobre uma pedra que restou da demolição da velha Igreja do Rosário. Agora, algumas beatas e um tal de Zé Nossa Senhora estão se reunindo todas as tardes para rezar um terço em volta da pedra. Tudo acabará quando a ela for arrebentada. — Não era toda a verdade, mas o padre não estava mentindo

— Esse tipo de coisa não é bom para Igreja. O senhor sabe disso. Termine com essa manifestação bem depressa, antes que escape de controle. — Curto e grosso, o bispo despede o padre.

A prefeitura contratou uma empresa especialista em demolições. Sediada na capital do estado, a empresa demorou algum tempo em levar máquinas e pessoal para a pequena cidade.

A terceira aparição de Santa Efigênia se deu numa fria manhã de quinta-feira, dez dias após a segunda. Na manhã fria e nebulosa, a névoa estendendo-se pelas ruas, travessas e praças, mal permitia que os transeuntes vissem dois metros à frente. Neblina pesada, rente ao chão. Nem mesmo as janelas das casas eram visíveis. Mas no Largo do Rosário a neblina se abria, deixando ver a pedra central e, impávida no pedestal, ainda mais uma vez, Santa Efigênia. O sol lançava raios através de uma abertura na densa neblina e a difusão da claridade no manto branco proporcionava um brilho surreal à imagem e ao rústico suporte. As vestes azul e rosa, a tiara dourada e a face pálida resplandeciam numa iridescência sobrenatural.

— Santa Efigênia voltou! Ela está, de novo, na pedra! — Os primeiros madrugadores se quedam, maravilhados, na admiração da fulgurante visão.

Instantânea, a notícia voou pela cidade. Desperta pelo alarido, a população acorre ao largo. Muitas pessoas ainda estremunhadas, esfregando os olhos, não acreditam no que vêem. Padre Norberto interrompe o ritual de se vestir para a missa e aparece trajando a alva.

— Outra vez! Isto é um sacrilégio, quem armou esta situação merece ser excomungado. — Dirigindo-se ao sacristão, que chega nos seus calcanhares, afobado: — Leva a santa de volta para a igreja.

Muitas vozes, uníssonas num coro, impedem o cumprimento da ordem:

— Deixa a Santa ! Deixa a Santa ! Deixa a Santa!

Alguns fiéis se interpõem, dentro do cercado, entre o sacristão e a pedra. Um momento de estática imobiliza padre, sacristão e devotos. A neblina se adensa, escurecendo o ambiente. Os tons cinzas da manhã cobrem tudo e todos. Religiosidade, superstição e medo tomam conta dos presentes.

— Deixa a Santa! Deixa a Santa! — Volta a gritaria, aumentando em intensidade.

Padre Norberto não sabe o que fazer. Ele também está impressionado. Isto não está acontecendo. De novo, não! Na minha paróquia, não! É um pesadelo, vou acordar, vou acordar!

— Meus irmãos! A Santa....— começa a falar. Suas palavras, entretanto, são sufocadas pelo coro implacável.

— Deixa ficar! Deixa ficar!

Serapião, o sacristão, é empurrado para fora do círculo de fiéis. Amedrontado, sai correndo em direção à igreja de S. Roque. O pároco, impedido de falar, também se afasta, e, desanimado, segue o caminho do sacristão. Quando ele se afasta, passada a iminência do recolhimento da santa, o tempo se abre, numa esplendorosa manhã, o sol brilhando com intensidade máxima, seus raios refletindo-se em miríades tonalidades sobre a santa, o pedestal e o povo ao seu redor. Alguém começa a tirar um canto religioso. Todos acompanham e mais gente vai chegando. Até mesmo algumas beatas que deveriam estar assistindo à missa debandaram para presenciar o milagre de Santa Efigênia. O clima é de êxtase. Mais gente vem chegando e todos se integram ao espírito de devoção e exaltação religiosas.

Padre Norberto verifica a cripta onde a santa estava colocada. Continuava fechada à chave, e a chave estava em seu poder, nem por um momento escapou de sua posse. Constituía verdadeiro mistério como alguém poderia ter entrado na cripta, com outra chave, tirado a santa e colocado sobre a pedra. Ou seria um milagre?

Comunica-se com o delegado de polícia, que comparece ao local, acompanhado de dois soldados.

— Nada a fazer. Nenhuma providência de minha parte, o povo está em lugar público e em ordem. Além disso, não tenho meios para dispersar tanta gente. — Informa o delegado. Lavo minhas mãos, eu é que não vou me meter nessa confusão entre padre e fanáticos, pensa.

O tempo trabalha contra Padre Norberto e ele sabe disso. Tem de resolver o problema rápido, a fim de se ver livre da confusão que poderá lhe custar o próprio paroquiato. Só vê um jeito de neutralizar a teimosia da santa.

— Serapião, vá chamar Chico Beiçola. Traga o preto aqui bem depressa.

Serapião parte célere e antes do capeta esfregar o olho, volta acompanhado do velho congadeiro. O pároco dispensa as preliminares, vai direto ao assunto.

— Chico, está autorizado a tirar a santa da pedra e levar pra sua casa, conforme me havia pedido. Fica sob sua guarda e responsabilidade. — Se a imagem sair da casa de Chico, o problema é dele, não tenho mais nada com isso. — Mas tem de ser depressa, agora de manhã. — Suspira aliviado e satisfeito com sua própria astúcia sagrada.

Chico Beiçola não se faz de rogado. Corre ao Largo do Rosário, dá a notícia ao povo e organiza, imediatamente, uma procissão. Leva, ele mesmo, nos braços, a imagem de Santa Efigênia, acompanhado de um lado por Zé Nossa Senhora e de outro, por Dona Mariquinha Pão do Céu. Entre ladainhas, orações e canções, seguem todos em passo solene, maravilhados pelas aparições da santa, que foi entronizada na casa de Chico.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 12 de novembro de 2001.

CONTO # 123 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/04/2014
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