Alíquota da Alma

Sem olhar em meus olhos me pediu: retira de teu ser uma alíquota da alma.

Absorto com tal pedido, respondi: por mais que o fizesse, apenas o sombrio encontraria. Não há nada nesse ser que possa lhe esvanecer.

Sem hesitar, por um instante sequer, retrucou: retira de ti uma porção da alma.

Ainda sem entender repeti: já vos disse que a minha alma em nada vos encanta, não há nada que possa lhe interessar.

Novamente: hei de repetir, retira do seu ser uma alíquota da alma.

Já irritado questionei: como hei de fazer?

De imediato escutei: Meça a tua consciência. Olha bem dentro de ti, encara a si mesmo, veja a quem é. Entenda as máscaras que lhe compõem, tente compreender o que lhe mantém aqui.

Confuso, mantive-me em silêncio.

Ele continuou: Observe aos teus atos, encare a si mesmo, não fuja de si. O que lhe assola? O que vos amedronta? O que te faz desistir?

Receoso, afirmei: temo a mim mesmo. Temo a este ser que me habita, a todo esse mal, temo a forma como vivo, temo a forma como penso, temo ao que sou em essência, temo a quem sou em essência. Temo, antes de tudo, a mim mesmo.

Novo questionamento: apropriado seria rejeitar a quem é? Ou apoderar-se de si mesmo? O que tu fizestes de tão impróprio para que não possa ser quem é? Por que temes a vida? Por que foges do mundo? O que há de tão grave assim que vos faz fugir?

Sem pensar confessei: eu desejo o mal, eu sonho com ele todas as noites; eu desejo ao fim, a loucura, desejo as desgraças e infelicidades que este mundo me reserva! Desejo viver essa loucura, me entregar à depravação ser esse ser odioso que sou! Ser esse ser pérfido que sempre quis ser! Desejo para mim e para ti todo o mal!

E de forma cruel, ele questionou: e por que assim não há de ser? Não é a isto que vós tendes buscado desde outrora? Por que trair a si mesmo? Por que abdicar de seu eu?

Sincero, respondi: porque quero o mal para mim mesmo. Quero corromper a minha vida, a quem eu sou, quero destruir ao meu ser. Quero me martirizar, me punir, quero me ver fracassar. Quero tudo de ruim que há, quero tudo de ruim que posso possuir, quero todo o mal só para mim.

E, como no início, sem hesitar, sem em meus olhos olhar, ele afirmou: agora que já retirou, entrega-me esta alíquota, quero dela contigo compartilhar.

Victor Said ss
Enviado por Victor Said ss em 31/03/2014
Reeditado em 23/05/2014
Código do texto: T4750805
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