Um anjo no meu telhado
É bem provável que você não acredite, leitor, na história que passo a narrar, mas eu posso afirmar que não se trata de ficção. Tudo isso realmente aconteceu.
Ainda é bem cedinho quando acordo com um ruído. Nada alto demais, apenas o suficiente para que eu acordasse. Fico alguns instantes tentando ouvir mais algo. Penso ter sonhado, já que meus cachorros sequer latiram, mas não ouço mais nada. Cismado com aquilo, levanto silenciosamente e me dirijo à sala. Abro a porta e constato que já estava amanhecendo, porém ainda não havia total claridade do dia que despontava no horizonte.
Saio na varanda, olhando ao redor, e nada de anormal percebo. Meus cachorros sequer levantam do conforto de suas caminhas na garagem. A temperatura está amena, convidando a voltar para a cama. É domingo e o silêncio na rua é absoluto.
Quase atendia ao chamado de meus cobertores quando, de relance, percebo um sutil movimento no telhado. Olho com atenção e avisto algo que até então só povoava a minha imaginação: a figura de um ser, parecendo criança, sem roupas, e com asas...isso mesmo, asas. Não havia como não se lembrar da clássica figura de um anjo, tão retratado em todo tipo de ilustração. O ser em questão realmente se assemelhava a um. Cheguei a lembrar dos afrescos de Rafael e Michelangelo e pensei que se aquilo realmente o era, eles também um dia o viram.
Sem conseguir raciocinar muito bem com aquela situação, ajo por puro instinto. Pego rapidamente uma escada que sempre ficava largada ali ao lado da parede, coloco-a de pé e de forma afobada vou me aproximando. Eu não vejo meu próprio rosto, mas me imagino com os olhos esbugalhados e a boca aberta, a respiração ofegante. As mãos trêmulas eu posso sentir, assim como a estranha sensação no estômago.
Assim que me aproximo o suficiente para segurá-lo, não hesito e assim o faço, acolhendo-o em meus braços e inicio a cuidadosa descida pela escada, sempre observando que meus cachorros nem sequer despertam do seu justo sono, visto a bagunça que haviam feito no dia anterior. Levo-o para dentro e coloco-o no sofá. Ele parece meio confuso, bastante passivo com a situação toda. Observo e penso que se fosse uma criança teria uns três ou quatro anos. Não havia como não prestar atenção às asas, não muito grandes, imagino eu que de tamanho suficiente para levantar o pequeno corpo. Exceto pelas tais asas, tinha todas as características de uma criança normal, com traços bastante delicados no rosto e um cabelo meio bagunçado.
Eu não tenho o que dizer. Afasto-me um passo e fico olhando para aquilo que ainda não sabia exatamente o que era. Na minha cabeça, apenas o óbvio: havia encontrado um anjo. Mas sempre mantive uma posição muito cautelosa com esse tipo de coisa. Deus, diabo, anjos e demônios, para mim sempre foram apenas criações de mentes humanas, sei lá com que propósito, mas apenas isso, fantasia, crendices. Agora, estava eu ali, parado no meio da minha sala, com um anjo sentado em meu sofá. Sabem aquela história de que quando estamos morrendo um filme se passa bem diante de nossos olhos? Pois bem, eu não estava morrendo, mas por instantes esse filme me foi apresentado. Vi toda e qualquer ação que realizei até então, desde as boas até as ruins, passando pelas estranhas, banais e bizarras. Cada pequeno pedaço de minha vida veio à tona naquele momento.
Tento voltar ao presente mas, mesmo sem a minha vontade, o filme continua rodando. Há momentos constrangedores, outros que me fazem sentir orgulhoso...caramba, acho que sou uma boa pessoa enfim...no momento seguinte sou destruído por uma lembrança ruim. Nem lembrava que tanta coisa negativa habitava em mim. Egoísmo, arrogância, ganância, preguiça, rancor, estavam lado a lado, numa balança, com simpatia, empatia, gentileza. Havia momentos em que a balança pesava mais para um lado, ou para outro, e às vezes havia o equilíbrio. No meio daquele turbilhão de pensamentos, percebo o olhar do suposto anjo, um olhar enigmático e perturbador, um olhar que me despe de tudo que tento esconder, um olhar que me deixa totalmente vulnerável e a descoberto. Naquele momento percebo que os segredos findaram. Percebo que não há saída.
Então, sem uma palavra sequer, as asinhas começam a vibrar, e o corpinho tão frágil é suspenso, pairando no ar bem diante dos meus olhos. Por alguns instantes, ainda revista a minha alma, e então sai pela porta que eu havia deixado entreaberta. Por alguns instantes penso ainda ouvir o bater das asas, enquanto escuto um dos meus cachorros resmungar qualquer coisa.