'' O ENCANTO DA ÁGUA ''

Aquele pedaço da fazenda Mato Dentro sempre foi sêco, era só areia, um areião de fazer dó e dar dor nos olhos de quem ficasse olhando muito tempo naquela direção, o povo do lugar costumava dizer que aquele pedaço de terra tinha sido '' mardiçoado'' desde os tempos dos escravos, diziam que os antigos fazendeiros no tempo da escravidão tinham ali os cativeiros, o trônco, os ferros, as argolas, e ali se praticava tudo que era marvadeza para punir os escravos desobedientes ou fujão, lá naquele pedaço de terra que antes era verdejante e até árvores havia se castigava, maltratava, punia, e o sangue escorria, o povo contava tambem que havia uma mina d'agua bem no meio do terreno do cativeiro, mas era tanta a marvadeza, era muita a judiação que se fazia ali, que um dia um escravo que estava sendo torturado para contar dos outros que haviam fugido rogou uma praga antes de morrer.

Eu vou ser o ultimo a ser castigado aqui neste lugar, depois de mim ninguem mais vai derramar sangue por aqui não, isto tudo vai secar, vai virar pó tudo isto e ai daquele que uma só marvadeza, uma só que seja, fizer neste lugar...e dizem que sete dias depois que o escravo morreu a primeira coisa que secou foi a fonte d'agua e sem ela a vegetação foi murchando, murchando e morrendo, as arvores em quinze dias perderam todas as folhas e em um mês secaram, cairam, apodreceram e o lugar foi ficando cada vez mais parecido com um deserto e assim foi por mais de cento e cincoenta anos.

O dono da fazenda ainda tentou recuperar a terra mas quanto mais ele tentava mais pó a terra virava, vinha vento e levantava a areia, tirava de um lugar e colocava no outro, um dia a altura da areia estava para o sul, no outro para o norte, e o povo notava que só aquele pedaço de terra era assim, em volta era pasto verde, arvores, sombra.

A fazenda foi passando de um dono para outro e no fim do ano de 2009 um grande banco tomou conta por dividas não pagas pelo ultimo proprietário.

Acontece que o penultimo dono havia deixado a preta velha Luzia a construir um barraco naquela parte da fazenda, ela havia trabalhado para a familia dele a vida inteira e quando ela foi ficando velha pediu para a dona da fazenda para deixar ela ir morar no Campo Sêco, como chamavam agora o lugar, ela conseguiu e a propria dona arrumou material para construir o '' barraquinho da negra velha Luzia que já estava entrando nos seus mais de setenta anos de vida'.

Luzia se mudou para lá e começou a dar um trato na terra sêca, os dois filhos dela mais as noras e netos vieram e cavaram uma valeta puxando água do regato que ficava mais para cima e a água agora corria bonita que só vendo passando ao lado do barraco, a primeira coisa que plantaram foi grama e depois a propria natureza foi se encarregando de trazer sementes de mato, de flores do campo e com o trabalho da negra Luzia em menos de dois anos nem parecia mais um campo sêco, era tudo verde que dava gosto de se ver e Luzia criava galinhas, tinha seus porquinhos, tinha agua, vivia feliz e assim foram anos e anos até que a fazenda foi vendida pelos herdeiros da antiga dona que havia falecido.

O novo proprietário, homem ainda jovem, jogador e beberão, nunca soube da história da fazenda, muito menos da maldição da terra sêca e assim que assumiu a propriedade já foi pedindo para a negra Luzia sair do lugar, ela recusou, ele ameaçou, nada adiantou, ela continuava , mas o homem ruim e marvado vivia ameaçando a coitada da preta velha.

Negra Luzia sofria, sofria calada, sabia que a terra não era sua e pedia para Deus Nosso Senhor ter dó dela e deixar ela ficar até morrer naquelas terras....e o dono, homem ruim e marvado voltando uma madrugada de suas farras e bebedeiras bateu o carro e morreu no meio das ferragens, a mulher dele levou o caixão para a capital e por lá enterrou o marvado e tambem ela ficou por lá e nunca ninguem mais soube nada dela...a fazenda ficou abandonada por mais de anos até que veio o banco e tomou conta de tudo.

O representando do banco veio falar com Luzia, lhe explicou tudo e lhe dizia que ela teria que sair do lugar, aquele lugar fazia parte da fazenda, o banco estava correto no direito de posse, Luzia pediu, implorou, para que ''os homens me deixem viver por aqui até eu morrer, depois oceis podem fazê o que quisê com a terra..'', nada feito.

A fazenda seria cortada ao meio por uma auto estrada e esta auto estrada passaria bem no lugar do Campo Sêco, agora não mais sêco e sim verdejante, o lugar iria desaparecer, a auto estrada seria larga e bem no lugar do barraco da Luzia passariam pontes e viadutos, um trevo ligando o interior e a capital do estado.

Vieram os homens com as ferramentas, com as máquinas, a auto estrada já estava bem adiantada, era só Luzia sair e as máquinas começariam a escavar os buracos para as fundações.

Os filhos vieram buscar Luzia, cataram os trens dela, as galinhas, porcos, gaiolas, papagaios e piriquitos, gato, cachorro e botaram tudo em cima de um velho caminhão e Luzia ficou olhando a máquina derrubar o seu barraco...na primeira batida o coração dela disparou, ela não aguentou e rogou a sua praga...

"" Oceis me tiram daqui mas aqui foi falado que nem mais uma marvadeza seria permitida e ai daquele que isto fizesse, pois bem, eu me vou mas aqui a estrada não vai passar, a água não vai deixar e tudo que fôr construido vai afundar'', virou as costas e se foi para nunca mais nem olhar para trás....queria morrer ali, foi morrer bem longe em outro lugar bem diferente.

A construção da auto estrada prosseguiu, foi ficando pronta, no trevo que agora ficava bem no lugar do barraco de Luzia passavam várias ligações, os pilares eram altos e o dia da inaguração se aproximando, os trabalhadores que faziam os canteiros, plantavam grama e arvores para embelezarem o lugar, notaram que uma fonte d'água havia nascido do dia para a noite bem em baixo da pilastra principal, a que dava escora para todas as outras, ficaram encantados com a agua, fresca, limpinhas, agua saborosa de se tomar e a noticia correu e até os engenheiros da obra foram lá saciar a sêde ...delicia de agua, diziam, delicia mesmo....e no dia seguinte a fonte já estava maior, já envolvia a pilastras e a agua corria com mais fôrça dia a dia, foi inundando tudo, a fonte d´agua já formava agora um pequeno lago e foi aumentando com o passar dos dias, foi inundando tudo ao redor das pilastras e um trabalhador notou rachaduras bem lá no alto do maior viaduto, foi um corre corre.

Estudos, recalculos, onde está o erro, onde foi que se errou?

E os trabalhadores se recusando a trabalharem por lá, diziam que estavam ouvindo estalos sêcos e viam trincas e brechas entre os vãos e a agua aumentando de volume, fazendo já rodamoinhos em volta das pilastras, levando terra, areia, e tudo o mais que encontrava pela frente, as fundações comecaram a aparecer e em menos de vinte e quatro horas a principal pilastra, a mais alta se afundou e junto com ela todas as outras se afundaram na lama, sumiram, e a agua agora parecia um rio caudaloso, levava toda a terra e areia de suporte da auto estrada, ficou um vale fundo e não teve mais inauguração de auto estrada nenhuma.

Depois de muito falatorio, disque disque e até ameaças de prisão para os culpados, se resolveu...vamos construir a auto estrada mais para cima, lugar mais seco diziam os engenheiros pois ali no antigo lugar agora é só agua, lodo e pântano...e os antigos moradores, o povo do lugar, agora ficam se olhando uns aos outros...antes era sêco que nem deserto, agora parece um mar, vai se entender, vai se entender....a preta velha Luzia entende....se entende.

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WILLIAM ROBERTO CUNHA
Enviado por WILLIAM ROBERTO CUNHA em 20/03/2014
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