TRAMA

Aconteceu no princípio do século vinte, no litoral do país. Manoel Jacinto era um imigrante português, pescador habilidoso, mas não gostava de ensinar as técnicas refinadas do ofício aos habitantes das redondezas; só o fazia em troca de favores e agrados; de quitutes gostosos a farras de indecências com solteiras irreversíveis.

Quase todas as noites, ele se encontrava com uma rapariga morena e magra, de longas madeixas negras, que usava saia bem rodada e comprida e uma máscara que lhe escondia o rosto. Eles entravam num esconderijo sob o monte de pedras grandes, perto da praia. Lá, trocavam confidências e juras, cheios de paixão, mas nunca chegavam aos carinhos, porque a moça não deixava. Isto fazia com que o português ficasse mais encantado ainda.

Esse chamego começou assim: havia uma cafuza rezadeira, já bem velha e muito sábia nas imediações, que fazia curas, juntava casais, indicava caminhos e outras magias, de nome Jandira. Certa vez, Manoel Jacinto lhe pediu que visse o seu futuro. Não acreditava muito nessas coisas, mas cismou de querer. Foi atendido de pronto, coisa rara, geralmente a senhora respondia com brutalidade a esses pedidos, sempre negando. Gostava de benzer, não de olhar a sorte. Ela o recebeu em sua modesta choupana e assim que fez a primeira reza, disse-lhe:

– A morena da máscara vai mudar a vida de ocê.

Espantado, ele perguntou insistentemente:

– Que morena? Que morena?

A benzedeira repetiu por três vezes, sem acrescentar ou tirar nada:

– A morena da máscara vai mudar a vida de ocê.

O curioso foi que depois disso, Manoel não conseguiu mais arrancar do pensamento a tal morena da máscara.

Passaram-se alguns dias. Era sexta-feira à noite. Os pescadores faziam uma festa religiosa na praia. O solitário e pensativo português conversava com alguns companheiros, quando avistou a moça mascarada. Ah, então ela existia mesmo! Era nova por ali, ninguém a conhecia. Provavelmente, filha de algum forasteiro recém-chegado. Devia ser devota de uma entidade do mar, talvez a máscara fizesse parte de um ritual. O encantamento de Manoel Jacinto foi arrebatador e imediato! Que feitiço seria aquele? Trocaram olhares. Ele se aproximou, como se hipnotizado e logo se harmonizaram. A partir dali, sucederam-se os encontros.

Dona Jandira tinha um neto também pescador, chamava-se Damião. Aplicado, era o único dos nativos que aprendia, cada vez com maior desenvoltura, os modos de pescaria do português, que ficava intrigado, pois, conforme já dito, não gostava de passar seus saberes para ninguém gratuitamente. Como aquele moço aprendia? Damião era muito calado, não tinha amigos, evitava aproximar-se dos outros. Diziam que era assim porque matou a mãe com seu nascimento e, conforme explicava a avó curandeira, precisava viver o mais isolado possível, para pagar tal pecado. Sua pesca era farta, os peixes pululavam em sua rede. Manoel estava preocupado, porque, em seu jeito de pensar, se alguma outra pessoa soubesse tanto quanto ele, correria o risco de perder as regalias, sua importância no lugar. Por outro lado, algo no ágil e franzino pescador o envolvia, despertava seu encanto. Fazia esses desabafos nos encontros com a morena, que era muito interessada em seu ofício, em seus conhecimentos e feitos, vantagens e segredos. Ele sempre lhe contava tudo.

Os dias no povoado custavam a passar, havia uma lentidão quase parada nas coisas e um marasmo inevitável incomodava todo mundo. Manoel Jacinto também sofria as consequências daquela pasmaceira. Já se cansava dos encontros com a moça, precários e limitadores. Foi o que disse a ela:

– Não suporto mais manter distância de teu rosto, de teu corpo, estando assim, tão perto. Por que não posso tocar-te? Nunca abracei-te, beijei-te, não conheço tuas feições, quase não escuto a tua voz! Nem teu nome sei! Pouco falas comigo! Somente falo eu; o que me faz bem, não nego, mas quero mais. Preciso de mais! Quero intimidade contigo!

Diante do silêncio da amada, ele se aproximou e agarrou-a abruptamente, a ponto de arrancar parte de sua roupa. A moça tentou contê-lo, mas não conseguiu. Manoel, transtornado, puxou, rasgou, arrebentou os tecidos, a máscara e depois a beijou à força, acariciando com afoiteza os cabelos e tocando seu corpo inteiro com sofreguidão. Foi aí que teve duas surpresas: as longas madeixas negras ficaram em sua mãos! Uma peruca! A segunda era enorme! E-nor-me! Ah, que desconcertante surpresa! Que desatino! A morena da máscara era moreno! Era Damião! Despido do disfarce, o rapaz, também muito assustado, contou tudo:

– A ideia foi da minha vó, ela sabia que o senhor não ia ensinar a lida da pescaria pra ninguém e nós queria aprender, pra não depender de nenhum explorador e ganhar dinheiro no povoado, com o aumento na quantidade de peixe pescado e vendendo ferramenta pra manejo nos barco. Ela achou que eu vestido de mulher misteriosa ia ter mais chance de tirar o saber da boca de sua pessoa. E tava certa; como Damião, aprendi quase nada, mas disfarçado, aprendi muito. Mas eu fiquei gostando de encontrar com o senhor aqui, de escutar o senhor falar, tinha vontade de contar a verdade, mas não tinha coragem. Fiquei triste, que descobriu assim.

E se recompôs, para sair. Foi impedido pelo português, que o segurou pelo braço:

– Espera! Não sei que mandinga é esta, mas não conseguirei afastar-me de ti. Mesmo sabendo que és um homem como eu, desejo-te, desejo-te ardentemente e sinto que me desejas também. Fica comigo! Ninguém precisa saber! Podemos continuar nossos encontros às escondidas! Posso ensinar-te tudo o que sei e trabalharmos juntos, ganharmos juntos! O que achas?

O moreno, permanecendo em silêncio, com um beijo, demonstrou assentimento.

A paixão do casal secreto e proibido aumentava a cada dia e nada poderia ameaçá-la, pensavam. Movidos pelo calor da alucinante sensação, unidos, produziram ainda mais e em pouco tempo, todo o povoado se beneficiou dos sucessivos progressos, alcançados a partir da pesca e da venda em larga escala dos peixes. Estabelecimentos comerciais foram abertos, as choupanas já não eram tão rústicas, construíram até uma capelinha. Os nativos todos, desde as crianças até os mais velhos, reverenciavam Manoel Jacinto e Damião, seu competente parceiro de trabalho e sócio. Os imbatíveis companheiros eram adorados. Festas e mais festas, homenagens, convites para almoços, aniversários, alguns casamentos e muitos, muitos batizados.

Quando o tesão era forte, incontrolável, seguiam para o esconderijo entre as pedras e aliviavam seus instintos esfomeados. Já não havia saia rodada, peruca e máscara, já não esperavam anoitecer, era na hora que desse vontade, mesmo com sol a pino. Aqueles dois pegavam fogo! Só que tanto apetite custou-lhes um preço alto demais: um grupo de pescadores, descontroladamente curiosos e instigados por gente venenosa, resolveu segui-los numa daquelas fugidas repentinas. Pelas gretas entre as pedras, ouviram e viram tudo. Em poucos minutos, todo o povoado já conhecia a história de amor pecaminoso de Manoel e Damião e não demorou para que os moradores tomassem uma decisão drástica: eles foram expulsos! Alegaram seus feitos, dedicação, responsabilidades sobre o progresso do lugar, fizeram chantagens, mas de nada adiantou, a repulsa do povo engoliu sua memória, gratidão e dependência. Sob ofensas, pedradas, escarros e fezes muito fedidas, os pecantes se foram e as coisas voltaram ao normal rapidamente. Os espectadores da safadeza evitavam falar e até mesmo lembrar-se do ocorrido, queriam varrer a desonra do lugar, sentiam-se imundos por terem simplesmente presenciado tamanho absurdo. Eram tão puros! Tão bons! Tão justos! Não mereciam testemunhar tanta vergonha! Não mereciam um castigo tão grande!

Jandira fingiu que de nada sabia, que também foi enganada e que a decepção com o neto doía muito. Alguns ainda ficaram desconfiados, mas logo se convenceram, depois de ouvirem insinuações ameaçadoras que fez, alardeando sobre seus poderes de feiticeira. A revolta do povo não engoliu o medo de suas macumbas. Como se alfabetizara na juventude graças à caridade de uma sinhá, prevenida, teve o cuidado de anotar tudo o que Damião aprendia com Manoel Jacinto. Estudava sobre pesca marítima e esclarecia dúvidas com o rapaz. Chegou até a praticar o ofício, em companhia dos sábios trabalhadores. Por isso e valendo-se da absoluta letargia dos habitantes do lugarejo, tornou-se dona de um império pesqueiro imenso, que caiu de lambuja em seu colo. Nunca mais teve notícia dos dois vagabundos imorais. E nem queria ter. Jamais saberiam que foi ela quem instigou a curiosidade dos pescadores e deu-lhes a ideia de seguir os malditos. Afinal, aquele macho-fêmea dos infernos, que fora obrigada a criar, tinha de servir para alguma coisa.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 17/03/2014
Reeditado em 19/03/2014
Código do texto: T4732937
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