OBSESSÃO

Quem tem culpa de sangue, caminha cambaleante, assim de lado, com as pernas pensas, como se portasse uma dor, uma agulha na carne. Tal e qual num poema de Leminski:

Carrega o peso da dor,

Como se portasse medalhas,

Uma coroa,

Um milhão de dólares

Ou coisa que os valha.

Não vive. Atravessa a existência afundada para sempre no mar do arrependimento, tendo constantes visões doentias do Inferno.

Era assim a vida miserável de Adélia, uma mulher cuja alma andrajosa retorcia-se diuturnamente sobre si mesma com o peso atroz da culpa irreparável do passado, quais raízes aprofundadas na medula óssea. Nunca dormiu de verdade sequer uma vez na vida. A não ser um sono breve e espasmódico, entrecortado por violentas tormentas de pesadelos tempestuosos e sonhos difíceis.

Casou sem ao menos ter sabido o que é ser feliz, padecendo de uma gravidez penosa e quase interminável. Sorriu unicamente quando viu o filho sair de suas entranhas, não por tê-lo visto nascer, mas por ter sentido o alívio das dores de parto. Sorriu pela segunda vez quando o filho lhe trouxe a netinha para que a conhecesse. O nascimento de um neto é um evento magnífico e traz refrigério para as almas combalidas como a de Adélia. A presença diária daquela inocente criatura lhe trouxe alívio para suas dores e entre elas nasceu uma afinidade nunca vista entre avó e neta. Adélia renasceu para a vida e até o sono lhe veio reparar a fadiga da existência. A netinha passava praticamente o dia todo ao seu lado como um anjo guardião.

Entendiam-se como ninguém. Nasceram uma para a outra, disso ninguém tinha dúvida.

Um dia, a netinha que já tinha cinco anos, chegou-lhe bem perto, como quem quer contar um segredo. As mãozinhas tocaram-lhe frias, os olhinhos fitando um ponto cego.

- Vovó, quem é essa mulher ao seu lado?

Adélia empalideceu. Viu que a menina apontava em sua direção. Virou-se bruscamente, mas nada viu. A menina parada sorria e apontava para ela.

- Quem é? – repetiu - Quem é essa mulher que está lhe abraçando?

O sangue de Adélia gelou-lhe nas veias. Sentiu mesmo um peso na cintura apertando-a, como num abraço. Sentiu ainda um bafo morno no ouvido.

- Ela está assoprando no seu ouvido, vovó! – A menina apontando ainda para ela, inocentemente divertia-se com aquilo.

Adélia contorceu-se toda quando sentiu um violento e brusco puxão nos cabelos. Uma dor lancinante percorreu-lhe a espinha, estalando todos os ossos, como se lhe rasgassem a pele, como quando um açougueiro ali chegasse e estripasse um coelho a sangue frio. Penosamente, antes de perder os sentidos, antes de desfalecer em um colapso, ainda ouviu a menina dizer:

- Ela não gosta nem um pouco de você.