A ÍNDIA IMORTAL

Através do binóculo Alexandre examinava as faldas da montanha a noroeste. É a última barreira antes de chegarem às margens do rio Tocantins. Do guia ao seu lado vem a informação:

— É lá mesmo, no alto daquela serra que está a Caverna da Índia. — Aponta para um morro que se destaca no perfil montanhoso do horizonte.

Alexandre ajusta o foco do binóculo. Consegue ver formações rochosas bem características da região do Jalapão, por onde a expedição está transitando: arcos, mesetas, cumes lixados pela erosão. É uma visão apocalíptica, onde as formas se chocam, se sobrepõem, um caos em organização — ou em estágio final da Criação.

A expedição faz uma parada para descanso. A tarde parece muito longa, o sol inclemente no céu de cobalto paralisa a natureza. Não se ouve um pio, um chiado, nada. O mormaço abate o ânimo e cansa os aventureiros. Estão caminhando pela região há dois dias. Deixaram os jipes e o equipamento mais pesado na vila de Jalapa-Mirim. Transportam o necessário para acampamento noturno e instrumentos leves. Estão no segundo dia de caminhada e o guia assegura:

— Amanhã por volta do meio-dia chegaremos na serra.

Najla aproveita a parada para fazer esboços da região, das plantas, das formações rochosas: sempre que pode, está desenhando, leva suas pastas com material para desenho onde quer que vá. É antropóloga e sua arte auxilia muito na exposição de seus relatórios. Alexandre vasculha com binóculo a região. Não perde um detalhe, tem uma memória notável, um senso de orientação peculiar dos grandes exploradores. Adivinha atalhos, caminha com segurança, orienta os companheiros para excelentes locais onde acampar. É biólogo. Sua formação profissional aliada a uma curiosidade imensa para com os mistérios da natureza, mais o treinamento a que se submete praticando esportes radicais fazem dele o companheiro ideal para uma expedição neste fim de mundo.

Do grupo de seis pessoas fazem parte ainda Dr. Melquíades, médico especialista em doenças tropicais, o fotógrafo Marcos Lambert, profissional independente e Suzana Camargo, indianista, ex-funcionária da FUNAI e verdadeira enciclopédia ambulante sobre índios brasileiros. Mais o guia, Raul, mestiço índio contratado na vila para uma semana de viagem. A expedição procura indícios de uma tribo que desapareceu há muitos anos, sem deixar quaisquer vestígios, habitantes da formidável região do Jalapão.

— Puxa, nunca pensei que esta região fosse tão diferente. Nem parece que estamos no Brasil. Já atravessamos deserto, areias movediças, e agora este planalto com estas estranhas formações de pedra.

O comentário do Dr. Melquíades revela a surpresa de todos. Estão caminhando há dois dias. No primeiro, atravessaram a mata fechada que cerca a vila Jalapa-Mirim por todos os lados. Região acidentada, a trilha descendo e subindo por morros, passando por espinhaços e afundando em vales estreitos, desfiladeiros, tudo coberto por densa mata. Cortaram a nado ou a vau 13 rios. Refrescaram-se nas estranhas lagoas onde é impossível se afundar: as nascentes, de tão fortes, exercem uma pressão muito grande do fundo das lagoas para a superfície. Numa delas Marcos, com seus 102 quilos, ficou boiando tal qual uma baleia.

O acampamento da primeira noite foi num descampado, sob um maravilhoso ipê que encontraram na sua floração máxima. Na manhã, ao se levantarem, a lona da barraca vergava-se pelo peso da grande quantidade de folhas caídas à noite. Um tapete dourado se estendia por muitos metros ao redor da imensa árvore. Espetáculo de cor e de luz que Marcos não cansou de fotografar.

Nessa manhã encontraram o deserto, curiosamente chamado de Água Seca. A travessia foi penosa, o vento fustigava, a areia batia com força. Protegeram rostos e mãos com panos enrolados. Apenas os olhos ficaram expostos e tiveram de andar abaixados, tamanha a força do vento. Saíram do deserto para a região de areias movediças. Por mais de duas horas, a caminhada foi lenta, o guia procurando passagem onde a areia mostrava-se mais firme. Usaram cordas para se amarrarem uns aos outros. Seguindo o guia, atolavam-se menos, mas houve locais em que afundaram até à cintura. Dificuldades sem fim, perigos a todo o momento.

No final da areia movediça, enfim, um oásis: a nascente do Rio Formiga, de águas borbulhantes, no meio de um bosque onde se entremeavam buritis e enormes paus-mulatos. Arrancharam e descansaram por duas horas.

— Antes do entardecer chegamos à aldeia dos Apiacás. — Avisou o guia. — Temos de ficar atentos, os índios são muito arredios. Não gostam de estranhos. É preciso pedir licença ao chefe da tribo para transitar por suas terras.

— Bem, pessoal, vamos em frente — Descansada, Suzana se põe de pé, pega sua mochila e seu chapéu. Os outros também se levantam.

Novamente na trilha, agora por um descampado sem fim, plano, o sol reverberando e fazendo miragens. Quando atravessam o Rio Novo, o guia informa:

— Daqui pra frente tamos nas terras dos Apiacás.

Sobem pela barranca, a vegetação muda: é um cerrado de árvores enfezadas, poucas folhas, troncos nodosos, secos. Por longos trechos de caminhada estão sob um dossel ralo formado por trançado de guaco, trepadeira de flores brancas. Em plena florescência, exalam um perfume doce, enjoativo. Muitas gabirobeiras. O guia vai orientando os expedicionários com seu conhecimento da flora e da fauna:

— Ali está uma periquiteira-açu bem velha. Olha o tronco: é só parasita. — Indica uma árvore frondosa em cujo tronco diversas orquidáceas se agarram e se esparramam em manchas coloridas.

Parou numa curva de trilha batida:

— Aqui passou onça não faz tempo. As marcas das patas são frescas.

— Vejam as marcas na areia fina.

Ao observarem os sinais na areia fina, os cientistas ficam alerta. Sem querer, Alexandre olhou para Marcos, o único membro da equipe que trazia uma arma, um pequeno revólver. Raul, o guia, levava um facão com o qual ia abrindo as picadas na mata cerrada, mas de que nada valeria num entrevero com qualquer animal selvagem.

O sol já diminuíra seu calor, descansava-se pelo oeste, quando viram o índio: de pé, altaneiro, braços cruzados, tem o porte de chefe. Parado no final de um pequeno trecho reto do caminho. O guia fez sinal, a caravana parou.

— Fiquem aqui, vou falar com ele.

Chega até o índio, troca palavras, mistura de língua indígena e português caipira. Volta com esclarecimentos:

— É o chefe dos Apiacás. A vila dos índios está perto, mas ele não quer que a gente acampe por aqui. Manda acampar rio acima, perto de uma cachoeira. Diz que vai levar comida, se a gente precisar.

Os expedicionários vão na direção indicada pelo chefe e encontram um sítio bom para acampar, às margens de uma lagoa grande. A cachoeira proporciona um bom banho para todos. As barracas montadas, lampiões acesos, uma boa fogueira onde as frigideiras chiam com os alimentos. Há um clima de tranqüilidade e relaxamento.

Chega o Chefe dos Apiacás, com dois companheiros. Trazem duas casas rústicas, feitas de embiras trançadas com folhas de palmeiras. Cheias de frutas, cocos, palmito-doce, mandioca, batata-doce.

— Sou Manapiacá, chefe da tribo dos Apiaçás. Minha tribo tem medo de estrangeiros. Por isso, peço: não cheguem até lá.

— Vamos na direção da Caverna da Índia. Queremos chegar lá amanhã. — Najla responde. — Queremos encontrar a Velha.

— Lenda muito antiga. Só lenda, não ser verdade que Índia Velha existe. Lugar sagrado para índio Apiacá. Não posso chegar lá.

— Como é a lenda? — Pergunta Suzana, que conhece a história mas quer saber a versão do próprio cacique.

O Chefe Manapiacá entende a pergunta como um convite. Senta-se e manda que seus companheiros também se acomodem. Espera os viajantes assentarem-se e conta o que sabe da lenda. O guia agacha-se ao lado de Manapiacá, a fim de ajudá-lo na narrativa.

— Faz muito tempo, mais de mil luas que aconteceu. Havia aqui duas tribos poderosas, a dos Apiacás e a dos Apinguis. Os Apinguis viviam mais para o norte, no sopé das montanhas que daqui se vê. Todos os anos, na lua cheia do verão, os Apiacás e os Apinguis faziam a Festa dos Indios-Machos. Ritual de iniciação dos índios jovens, que já estão na idade de tomar índia e fazer filho. Ritual secreto, feito no meio da mata e na taba. Proibido para as mulheres, que, durante os dois dias da Festa, ficam encerrada nas ocas.

— Todos os índios participam da festa? — Perguntou Najla.

— Todos índios adultos e os jovens em idade de receber iniciação. As mulheres e as crianças ficam, não podem ver nada. Os índios vão todos pro meio da floresta, ficam três dias. Fazem máscaras e saias com folhas de coqueiros e de bananeiras, cobrem todo o corpo com as vestes mágicas. Passam urucum nos braços, mãos, pernas e pés. Assim vestidos voltam à aldeia, onde fazem a dança ritual. Só de índios. Depois, voltam pra mata, ficam mais um dia. O pajé faz a iniciação de cada índio-jovem. Queimam então todos os trajes usados na Festa, na Dança. Uma grande fogueira no meio da mata. Quando voltam para a taba, os índios-jovens já podem escolher a companheira.

— E a história da Índia Velha? — Najla não consegue esconder sua ansiedade.

— Invenção do Vento-que-conta-histórias. Índia curiosa da tribo dos Apinguis quis ver Dança Proibida. Mananga-apingá, o pajé, descobre que a índia viu a Dança Proibida e revela a maldição, o castigo que vai cair sobre a tribo: a extinção total. Providencia a Dança Final, durante a qual todos os índios, exceto ele, pajé, e o cacique, tomam uma bebida especial. Ficam todos mansos como as juritis. Então o Pajé e o Chefe matam todos da tribos e também se matam.

— Puxa vida, que história! Si non é vero é bene trovato. ! — Comentário de Marcos Lambert, que aproveitava para tirar boas fotografias do Chefe Manapiacá enquanto contava a história.

— Lenda muito triste. Tribo dos irmãos Apinguis foi totalmente exterminada. Diz que Índia Curiosa não morreu. Levou flechada no ombro, fingiu de morta. De noite, arrastou-se até o rio, fugiu. Diz que ela mora na caverna e sua maldição é pior: não morre nunca. Mas é tudo lenda, não é verdade. — Com estas palavras o chefe Manapiacá encerra sua visita.

— Amanhã Chefe Manapiacá vem para levar estrangeiros até sopé da Montanha. Não queremos que passem pela taba. — Levantam -se o cacique e os dois índios, saindo do acampamento.

Na manhã seguinte, quando os expedicionários saem das barracas, lá estão os três índios, de pé, imóveis, na orla da mata. É como se tivessem passado a noite ali mesmo.

Sem muita conversa, levantam o acampamento. Seguem pela trilha, liderados pelos índios. O caminho indicado pelo chefe índio é mais longo, dá uma grande volta, a fim de evitar que a caravana passe pelas proximidades da aldeia. Pelo meio-dia, param.

— Daqui não passamos. Começam as terras dos Apinguis, proibida para índios Apiacás. Quando voltarem, sigam por esta trilha, não cheguem até taba de Apiacás. — Viram nos pés, sem se despedir.

Raul assume novamente seu posto à testa da caravana. Caminham alguns quilômetros, param para descanso e lanche. Com o binóculo, Alexandre examina o horizonte, as altas montanhas. Raul também gosta de usar o binóculo do doutor.

— Já vejo a Caverna da Índia. Fica atrás daquele bosque quase no topo da montanha. — mostra para Alexandre a mancha verde-escura. — Mais umas quatro horas e chegamos lá.

E chegaram. De longe, viram a caverna, entre as árvores. Ao se aproximarem, notaram sinais de ser habitada: um abrigo de folhagem, peles estendidas sendo curtidas, restos de uma fogueira com tições ainda fumegantes.

Os viajantes desarrumam a tralha. Pretendem acampar ali mesmo. A antropóloga chama Raul, pedindo que a acompanhe: afoita, decide entrar logo na Caverna. Com cuidado, olhos bem abertos, ouvidos apurados. A escuridão da caverna é amenizada no interior: uma chaminé ao fundo permite a entrada de uma estranha claridade. É pega de surpresa pela moradora, uma velha que aparece de repente na sua frente. Não se assusta.

A velha diz algo incompreensível, numa voz rouca, há muito sem uso. Raul traduz:

— Quem é você? Que quer aqui?

Antes de responder, Najla observa o vulto da mulher encarquilhada á sua frente: não tem mais que metro e meio, curvada. Milhares de rugas marcam sua face. O corpo está coberto grosseiramente por peles e palhas trançadas. Nariz achatado, enorme. Dois olhos vivos, muito brilhantes dentro de profundas olheiras. A boca sem dentes, cabelos brancos, finos, poucos: é muito calva, o cocuruto brilha. Braços magros, é pele sobre osso. Adivinha que seu corpo todo é assim. Pés grandes mostram que foi uma mulher alta, hoje reduzida a anã.

— Somos viajantes, viemos conhecer você — diz Najla — "Será que ela tem noção da existência de outra coisa além da sua caverna?” pergunta-se a cientista.

Um contato preliminar é estabelecido, a velha não se mostra temerosa. Pelo contrário, é cordial. Contudo, não sai da caverna, nem diz qual o seu nome. Quando Najla lhe fala da história da sua tribo, ela dá uma risada tétrica. E confirma: sim, ela escapou da matança, mas tem uma maldição.

Já está escurecendo. Najla faz tenção de sair, é segura pelas garras da velha, que lhe promete:

— Se quiser, volte de noite que lhe conto tudo. Mas só para você, não quero seus amigos aqui.

O grupo está acampado a uns 100 metros da gruta. Quando Najla lhes conta o encontro, recebe avisos e advertências:

— Esta índia pode ser uma louca! — Suzana mostra uma ponta de inveja. — Ou feiticeira!

— Não estou gostando disto, que você acha, Raul? — pergunta Alexandre.

— A velha pode ser caduca, louca não é. Nada vi lá dentro o que possa pôr Dra. Najla em perigo. Nem faca, nem espetos, nada de perigoso. Aliás, se ela for, tenho de ir com ela para servir de intérprete. A índia só fala a língua dos Apinguis.

Najla decide-se. Quando entra de novo na caverna, a índia está sentada em frente à pequena fogueira, acesa sob a chaminé, no fundo da cova. De um pote sobre o fogo evola-se um vapor de aroma doce, suave. Senta-se de frente para a índia e Raul acocora-se por perto.

A velha começa a falar, e beberica da bebida do pote, que passa para Najla, convidando-a também a beber. A bebida é boa, doce, tranqüilizante. Raul também bebe.

A velha continua falando, Raul traduzindo.

Najla sente-se bem. Um entorpecimento vai tomando conta de sua mente, que se expande. A caverna se amplia, não é mais a caverna, é a oca maior da taba onde estão reunidas as mulheres índias. Todas sentadas no chão, numa roda, as faces voltadas para o centro. Najla vê o interior da oca e ao mesmo tempo vê os índios voltando da mata. Completamente cobertos por palhas de buritizeiro. Na cabeça usam cocares invertidos, de palhas secas, que chegam até à cintura e nesta, uma saia muito densa de folhas verdes. Nos pulsos e nos tornozelos grossas tiras de embira vermelha. As cenas se desenrolam num ritmo veloz, muito mais rápido que na realidade. É difícil para Najla acompanhar a movimentação. A dança se transforma num frenesi de pulos e a cantiga monótona vira uma série de gritos. Os índios voltam para a floresta.

A seqüência aparece como num sonho, sem lapso de tempo: os índios estão reunidos na praça da taba, o pajé fala alto e gesticula em movimentos enérgicos. Parece estar com raiva. Toda a tribo está reunida. Procede-se a separação das crianças, que são encaminhadas num magote para a beira do rio. Ali são trucidadas. Tudo num silêncio espectral, elas sequer choram ou reclamam. Para o morticínio os índios usam flechas, tacapes, machadinhas de pedra. Uma carnificina.

Segue-se outro massacre, o das mulheres, num campo cultivado. Os corpos não são enterrados. Em seguida os homens se dirigem para a floresta mais densa. Debaixo de uma árvore gigantesca, o pajé parece se dirigir à floresta, num ritual. Em seguida os homens são mortos pelo pajé e pelo cacique. Flechas e lanças são usadas. Restam, finalmente, o cacique e o pajé. Cada qual toma de sua lança, aponta para o peito do amigo e, num movimento único, se matam.

No local onde as mulheres foram massacradas, uma delas rasteja para longe dos cadáveres. Está flechada porém não mortalmente. Fingiu-se de morta. Agora é como se Najla estivesse no corpo da índia, procurando desesperadamente chegar à beira do riacho, onde retira o pedaço de flecha do ombro. A dor é lancinante. Lava a ferida, toma bastante água. Tenta levantar-se e caminhar, mas está fraca, descamba ali mesmo onde permanece até o amanhecer.

Caminhando com dificuldade, a índia procura ervas para a ferida. Tem consciência de que sua sobrevivência é continuação da maldição que caiu sobre sua tribo, por causa da sua curiosidade. Sabe que vai continuar viva, sozinha (o que já é uma desgraça) e que sua atribulação não terá fim. Sente todo o horror da maldição.

Najla dá acordo de si ao alvorecer. Os raios do sol nascente chegam até seu corpo, esquentam seu rosto. Desperta completamente com tremenda dor de cabeça. Fome. Procura a índia velha, tenta vê-la no escuro da gruta. Levanta-se com dificuldade. Sente um peso tremendo sobre o corpo. É como se tivesse vivido realmente todo o drama de horror e morte que vivenciara. É como se o espírito da velha tivesse incorporado nela, durante a noite, a revelação de toda a história.

Mas foi mais do que uma revelação. Najla sabe que viveu, por momentos, minutos ou horas, todo aquele dia e noite de pavor da tribo. Ela estava lá.

Com dificuldade, zonza, perambula pela caverna. Horrorizada, olha para as próprias mãos. Passa os dedos pelos cabelos finos, brancos. Sente a pele do rosto seca, enrugada.

Vai até o fundo da caverna. Encontra a índia velha. Morta.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 3.SETEMBRO.2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/03/2014
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