O filme vai começar
A memória ausente levou consigo o quinhão das sólidas referências de consciência que compõe a celebração à perspectiva, claro que não uma mera perspectiva, mas um ponto de fuga do ordinário; do fugaz; padronização. Isso tudo estava desativado.
Um anfiteatro para projeção cinematográfica foi o que restou à sua frente. Tão desativado quanto sua memória. Poltronas empoeiradas recobertas com lençóis amarelados; andorinhas revoavam crisnando em defesa de seus ninhos; frestas permitiam luminosos raios bíblicos; o cheiro predominante era de nostalgia.
Parado ali no corredor, olhava o vazio ambiente como quem olha para um vale do alto de uma cadeia de montanhas. A tela branca apresentava manchas esparsas. Caminhou em direção às poltronas dianteiras. Escolheu a ermo a terceira poltrona da oitava fileira; sentou-se, ou, deixou o corpo cair no estofado encaroçado e sujo levantando um ballet de poeira preguiçosa.
Fixou os olhos na tela como quem espera o apagar das luzes mas o que se apagou lentamente foi sua atenção de vigília. Um sono pesado e bem vindo o carregou dali para um sonho vívido; desses que não parecem sonhos, de tão real.
Diante de sua tela mental ou seja o que for, desenrolou-se uma cena típica de uma época medieval. Uma taverna de aspecto abandonado à beira de uma estrada enlameada às cinco horas da tarde.
Aproximou-se à porta como se fosse um freqüentador regular e já ia empurrando-a; hesitou e lentamente a abriu. Ninguém presente. Encostou a mão na porta e sentiu o ambiente antes de adentrar. No recinto em penumbra divisou oito mesas muito rústicas cobertas com panos velhos e sujos. Somente uma delas estava em melhor condição. Estava limpa com pratos e talheres postos. Havia uma talha e uma caneca de argila verde. Supôs que na talha deveria haver vinho.
Sentou-se. Apanhou a talha e sentiu o peso do líquido. Não hesitou em encher a caneca. Sim, um vinho, densamente tinto.
Bebericou bem devagar para sentir o aroma e o frutado do mosto. O carácter do precioso, se lhe apresentou às portas do divino. Tudo ao redor lhe parecia arranjado para proporcionar bem estar.
A cada gole fechava os olhos e se lhe abriam visões como de multidões em alvoroçado falatório; música rápida e instigante fustigava-lhe os ouvidos.
Degustava um gole do precioso, enquanto sentia que o local rodopiava à sua volta como se estivesse em um carrousel. De repente tudo escureceu.
Só negrume o envolvia. Sentiu medo; muito medo. Pior, não sentia o chão. Silêncio total. De sobressalto faltou-lhe o ar quando um facho de luz o atingiu no peito revelando tudo que havia a sua volta. E o que viu assombrou-lhe completamente: uma platéia atenta olhava-o como quem espera uma atitude de cena. Ergueu-se sabe Deus como, e olhando para a platéia soltou: “o que vocês querem?” Logo percebeu que essa frase ecoou apenas em sua mente. O público continuava impassível.
Então entendeu que sua realidade não ultrapassava a dimensão de uma tela
–— Estou preso a uma tela!... tela... cela... Tentou pular para fora dali mas o que conseguia era um avanço apenas virtual.
Percebendo a inutilidade de qualquer esforço para escapar, resignou-se.
Uma voz em off lhe disse: não se canse à toa apenas siga o script; distraia-os; o filme já vai começar — mais uma vez.