A visita
Naquela noite eu passava por uma rua vazia, com casas grandes e velhas; ruas obscuras, com pouca iluminação... Parecia um bairro abandonado. Andei até onde não mais havia asfalto, era apenas a estrada de terra. Fiquei vagando por aquela rua com pensamentos distantes. Parei. Uma casa me chamou a atenção. Segundos depois me dei conta de que aquela era a casa à qual eu fui enviada para uma visita – minhas visitas costumam ser bem rápidas e chatas, mas como tudo na vida tem exceção, eis aqui uma das minhas poucas. A casa era de madeira e antiga, grande, com uma varanda ao redor dela; a cerca de madeira estava em partes quebrada e o mato crescido. Crescendo. Não parecia ter vida naquele lugar. Então me perguntei o porquê de estar ali. Observei mais um pouco a casa do lado de fora. No segundo andar havia uma luz fraca, dava para ver muito pouco através da cortina que parecia ser algo como renda. Alguém estava à minha espera.
Abri o portão e adentrei o quintal, bem devagar, fui analisando tudo. Uma casinha de cachorro jazia no quintal, havia uma placa com o seu nome, era Bug. Senti uma estranheza familiar, não sei de onde vinha aquilo. Senti náuseas também. Pensei sobre o que poderia ter acontecido àquele cãozinho... Senti tristeza. Não entendo esse meu sentimentalismo exacerbado ultimamente... Segui até a escada que levava à varanda. A madeira estava tomada por cupins. O vento que batia na casa e ultrapassava os vãos entre as taboas fazia um barulho estranho, o barulho do mato que balançava era menos assustador. Aquele lugar não me remetia a nada. Nunca vi algo tão vazio quanto aquilo. E olha que sou um tanto vazia.
Por fim vi-me à porta, abri-a e entrei na casa. Fiquei por um instante parada próximo à mesma. Na sala estava uma televisão ligada, mas só ouvia-se o chiado dela. Acredito que a antena não funcionava há tempos. No sofá estava um cobertor; ao chão, sapatos espalhados. Sapatos de criança. A tintura que cobria as paredes estava desgastada; podia-se ver o tom seco da madeira velha em contraste com a cor branca da tinta. Resolvi parar de observar e seguir até o cômodo que havia luz. Eu não estava ali para analisar todas aquelas coisas: eu estava em busca de alguém. No entanto eu não sentia vida naquele lugar, eu não sentia nem mesmo dor... O vazio era tudo o que morava ali. Não sabia se queria mesmo encontrar alguém lá, mas pensei na viagem que seria perdida, caso não houvesse ninguém de fato, então resolvi esperar por algo. Aonde eu vou tem de haver vida – seja ela triste ou feliz – se não houver, como poderei eu tirá-la?
Enquanto subia as escadas observava as fotografias na parede: a mãe, uma mulher que tinha um sorriso amigável, a única que sorria nas fotos; o pai, o pai já não sei, não vi expressão nenhuma em seu rosto; e três crianças, a pequenina era loira, a do meio também e a mais velha... a mais velha era triste, apesar de que no rosto de ninguém eu vi felicidade, mas também não via tristeza, nela havia. Seu rosto era branco, tão branco, com cabelos e olhos negros que se destacavam em todas as fotografias. Eram fotografias estranhas, aleatórias, sem muita expressão. Bug. Havia uma foto dele junto à criança dos olhos negros. Bug era como seus olhos: escuro e lindo. Era um cão grande, gordo, sem raça; era um cão realmente muito bonito.
Pois bem, aquela luz fraca que antes eu via lá de fora agora estava ao fim do corredor. Andei vagarosamente até a porta e me deparei com aqueles longos cabelos. Havia vestígios de sangue pelo quarto. A menina estava imóvel deitada em sua cama e de costas para mim. Um lençol de bichinhos a cobria... Cheguei perto e mais uma vez senti náuseas, arrepios por todo o meu corpo. Encostei minha mão no ombro da garota e tudo o que ela fez foi abrir os olhos, bem lentamente. Não se mexia, estava magra, fraca, debilitada demais para qualquer movimento.
Ao seu lado estava Bug – por isso tantos arrepios, ele estava magro também; não se parecia nem um pouco com o cão da foto. Ela também não lembrava muito a menina das fotografias; sabia que era ela, apenas, pelos seus olhos intensos e profundos, porém tão vazios. Pareciam por pedir ajuda nas fotos... E, agora, aqueles olhos me fitavam e pediam ajuda à mim.
Havia sangue seco no nariz, na boca e no pescoço da menina. Bug ainda estava presente. Percebi então que meu dever não era buscar apenas um, mas dois. O cãozinho respirava devagar, assim como a sua dona, que o mantinha sob o lençol junto a ela – tão juntos que pareciam um só. A menina não tinha mais que dez anos de idade, embora parecesse velha – talvez devido à fraqueza ou ao cansaço; ou ambos e algo mais. Algo mais que eu nunca saberia. – Por favor... – foi tudo o que saiu por entre aqueles lábios secos e feridos. Uma voz tão fraca me implorava por socorro. Eu apenas consenti.
No lençol havia sangue, eu não queria levantar, não queria ver o que estava escondido. Se estava, provavelmente era para eu não ver. Passei a minha mão sobre os seus cabelos e disse: – Vamos então... Eu, você e o Bug, ela então fechou os olhos, e o cãozinho não mais respirava.
Fiquei ali observando aquela cena; uma garotinha tão bela, junto a seu cachorro, seu amigo – o que parecia seu mundo, deitados em uma cama, num quarto sujo e ensanguentado. Agora sim aquele lugar estava vazio, mais do que estava antes. Levei minha mão até o abajur e o desliguei. Olhei pela janela a noite que me esperava tão bela e única lá fora. Lembro que, enquanto observava o exterior daquela casa, me questionava o porquê de aquela menina ter me visto – as pessoas não me veem, nunca – ela já estava morta quando cheguei; ou estava sozinha há tanto tempo que se esforçou para ver a mim, se esforçou para me esperar. A morte é a única que sempre vem.
Olhei para a porta e surpresa me deparei com a garota, e ao seu lado o Bug. Eles me pareciam bem... Olhavam para mim e sorriam. Acho que ninguém nunca sorriu ao ver a minha face. Eu não sabia o nome dela, nem o que havia acontecido com os dois... Na verdade nem queria saber. O que vi já foi o bastante.– Vamos... – ao dizer isso ela interrompeu os meus pensamentos. E, pela primeira vez, eu saí andando com as duas vidas que eu mesma havia tirado do mundo.
Saímos daquela casa sem nada dizer. Apenas lado a lado: Bug, a menininha e eu. Olhava aqueles olhos, tão profundos, tão cheios de vida, e lamentei por não tê-los visto daquele jeito quando a vida ainda estava nela. Agora, só depois de morrer, a garota sentiu paz, felicidade... Talvez gratidão... Era tudo o que eu sentia vindo daqueles olhos.
Depois disso eu nunca mais a vi. Andamos até o fim daquela estrada e depois ela desapareceu juntamente com Bug em meio à névoa da madrugada. Ainda lembro-me daquela menina, lembro-me de cada detalhe. Ainda me ronda a mente o que de fato havia acontecido naquela casa, mas sabe, há coisas que é preferível nem saber. Certas coisas as pessoas podem não aguentar... Nem mesmo a morte.