Os milenares
“A vida deve ser vivida como uma imensa, única e contínua obra de arte; um imenso drama, uma tragicomédia tecida momento a momento. Devemos viver a vida como se soubéssemos estar compondo um espetáculo a ser revivido por outros, instante a instante.” Igram Shom Peik.
A explosão tecnológica e a busca sôfrega pela imortalidade haviam permitido o prolongamento indefinido das mentes, poucas delas conscientes, a maioria apenas temerosa da morte, palavra perturbadora. As poucas décadas de explosão tecnológica tinham gerado mais inovações que todos os milênios anteriores somados, desde o domínio do fogo, e a imortalidade potencial foi conseguida graças ao desespero.
Temerosos, os homens já não precisavam morrer, condenados, por isso, a desvendar a tecitura do tempo, a esmiuçar cada uma de suas fibras paradoxais, vivenciando momentos cada vez mais longos e tediosos a compor um todo frívolo e vazio.
Primeiro vieram os jogos, o mergulho em vidas artificiais absurdas a comprimir os instantes, tornando-os passíveis de digestão. Mas assim se engoliam os milênios, numa frivolidade tão tamanha que chegava a ser vil. Depois que todos os mesmos jogos já haviam sido jogados repetidamente, o tédio inundou esse último bastião.
Enquanto os instantes se esticavam longa e tediosamente, os séculos se comprimiam como em um suspiro, e os milênios se sucediam enfadonhamente, sem nenhuma lembrança marcante a lhes conferir notabilidade, sempre na mesma monotonia.
Era o preço da imortalidade: o tédio infinito da eternidade.
Superadas as carências, as doenças, todos os males e até a finitude, restava apenas o tédio avassalador e sem limites, pior que a morte. Todas as emoções possíveis já haviam sido vividas e revividas por cada um dos seres, enredados, todos, pelo mesmo aborrcimento abissal.
Superada a morte, foi o tédio que obrigou a criar o esquecimento; impossível confrontar o tédio avassalador de toda uma eternidade. Apagada toda a memória, toda a consciência, podia-se renascer, reviver cada momento importante em cada vida; fruir novamente cada uma das delícias que constituíram um dia as descobertas da vida.
Vieram então as revivências. Recuperadas todas as vidas, todas as vivências passadas, como prédios antigos, ou fósseis preservados, cada homem do futuro reviveu cada lembrança vivida por cada um dos homens do passado, redescobindo suas glórias, revivendo suas dores.
E cada uma das vidas foi transformada assim em um longo espetáculo, em uma apresentação teatral realista e comovente, revivida sucessivamente.
E foi assim que os imortais voltaram a sentir as emoções necessárias para iluminar a vida.