PAPAI NOEL SEM TETO

Era noite de Natal. Fazia frio e chovia uma chuvinha fina, penetrante e persistente. O vento que vinha do Sudoeste contribuía para empurrar a umidade para dentro dos ossos das pessoas que não tinham onde morar...

Nas casas e apartamentos as luzes piscavam nas janelas e nas árvores de natal. Os enfeites coloridos contribuíam para refletir o lume dos pisca-piscas nos costumeiros penduricalhos natalinos.

Automóveis apressados corriam pelo asfalto, encharcado, espirrando água e lama engordurada por sobre aqueles que se ajeitavam como podiam sob uma ou outra marquise acolhedora.

As pessoas riam de tudo e de nada, tagarelavam coisas triviais e quase sem sentido, no meio da comilança desenfreada que costuma pontificar nessa noite.

A maioria delas quase nem se via durante os demais dias do ano. Algumas até davam graças a Deus por não se encontrarem. Desejavam a distância e a ausência de intimidades, mesmo sendo aparentados próximos. Enfim, faziam parte da família...

Nos televisores ligados pululavam miríades de Papais Noéis, todos barbudos, barrigudos, bochechudos, nos seus trajes perpétuos, fazendo ouvir o indefectível gargarejo “ho-ho-ho-ho!”...

Os anúncios se sucediam entremeando o espocar de fogos coloridos e propagandas disso, daquilo ou daquilo outro. Era a indefinida indução para que os últimos recalcitrantes obedecessem às ordens de compra de coisas úteis ou inúteis...

Os bancos, em sua magnânima bondade, ofereciam créditos e mais créditos aos menos avisados, para gastarem o dinheiro que não tinham, com coisas de que não necessitavam, para exibirem, uns aos outros.

As crianças, excitadas, não despregavam os olhos do relógio cuco esperando o passarinho avisar que já era meia-noite. Aos pés da árvore natalina os presentes, embrulhados em papel colorido, contrastavam com o verde escuro e monótono do pinheiro de plástico; mesmo de todos os anos.

A reunião fazia parte da tradição familiar e nacional. Quase todos, um dia, foram batizados e não podiam deixar de cumprir com o compromisso social que os ritos confessional e comercial exigiam.

Quase todos, sim, pois na rua também viviam familiares e crianças que, em razão da própria desgraça, mantinham-se unidos nessa e em todas as outras noites. O calor dos corpos, juntos, ajudava a suportar o frio, o vento e a umidade. Os trapos rotos, impregnados de sujeira, cooperavam para minorar o mau jeito da vida.

O burburinho das famílias em festa penetrava pelos ouvidos martelando o cérebro daquele arremedo de família que passava mais um Natal ao relento, sem qualquer sentimento a não ser o de abandono e total exclusão. Nem bolsa família, nem bolsa escola, bolsa nenhuma...

Dinha e o filho dormiam aconchegados. Borel, acordado esperava, ansioso, ouvir o vozerio da cidade avisar o encontro dos ponteiros na marca da meia-noite. Lá dentro do coração, uma nesga de bondade misturada com a apreensão por uma outra ponta de felicidade.

Durante o dia, catava lixo e, ao passar por uma pizzaria da Quadra Central, topou com um saco de plástico em que estavam vários pedaços rejeitados pelos felizes refestelados da cidade. O estabelecimento era um rodízio e as pessoas não se importavam com as bordas. Comiam só o apetitoso recheio. O resto, deixavam para o descarte.

Borel manteve segredo sobre o achado, até que percebeu que nos apartamentos e casas, as pessoas já estavam cuidando de abrir os pacotes coloridos. As risadas aumentaram. Todos estavam felizes com os presentes trocados e assim, mergulhavam nas comilanças e beberragens.

Nesse momento, Borel levantou-se foi até um canto mais afastado, da parede e, de dentro de uma caixa de sapatos coberta por uma folha molhada, de jornal, retirou o saco com os retalhos de pizza. Eram de vários sabores; frango, presunto, portuguesa, calabresa, chocolate e outros tantos.

Com muito cuidado, deu suaves toques nos corpos da mulher e do filho que dormiam.

-- Dinha! Acorda, Dinha! E você, menino! Acorda! Vejam o que foi que aconteceu aqui!

-- O que foi, homem de Deus? É a polícia? Vão levar a gente, de novo?

-- Nada disso, Dinha! Hoje é noite de Natal e os policiais estão na maior festa! Ninguém quer saber de andar pelas ruas catando gente sem teto, né?

-- Então o que foi, pai? Perguntou o garoto, coçando os olhos.

-- É que eu estava dormindo quando senti alguém sacudindo o meu ombro e chamando meu nome! Fiquei assustado! Pensei que fosse algum desses malucos que estão tocando fogo na gente por aí! Olhei para vocês e vi que estavam dormindo. Foi então que vi o homem! Era um velho barbudo, com um barrigão deste tamanho, com um saco enorme, nas costas! Estava todo de vermelho! Foi aí que vi. Era o Papai Noel!

-- Olhou para nós, tirou essa caixa de dentro do saco e disse: Tome! É para vocês comemorarem o Natal de Jesus! Ele lembrou-se de vocês e pediu que trouxesse esse presentinho para não passarem em branco os festejos da noite!

-- Não tive nem tempo de agradecer. Quando vi, já estava entrando no trenó e balançando as rédeas para continuar seu trabalho. Mas, ainda pude ver que ele estava limpando os olhos com um lenço branco. Estava enxugando algumas lágrimas! Tive pena dele! Acho que ninguém nunca viu Papai Noel Chorando! Eu vi e chorei, também!

-- Então, os três comeram todo o saco dos restos de pizza, agradeceram a Jesus, pela lembrança e voltaram a dormir abraçados e satisfeitos. Não sentiam mais fome...

Já quase pegando no sono, Dinha balbuciou: Ele que faz aniversário e nós que ganhamos presente? É muita sorte, mesmo! Mas, fiquei com dó do Papai Noel! Por que será que estava chorando?

Amelius
Enviado por Amelius em 11/12/2013
Reeditado em 24/12/2018
Código do texto: T4607648
Classificação de conteúdo: seguro