MALTRAPILHO DE OURO

Distante da sanha urbana, num terreno de solo seco, havia um galpão em ruínas, guardado por oito dobermans famintos e espessas grades de aço. Lá morava Faustino, chamado pelos conhecidos de Caveira. Era um andarilho doente, sujo, esfarrapado, submisso, cabisbaixo e monossilábico que perambulava pela cidade, pedindo esmolas e restos de alimentos para si e seus cães. Alguns diziam que o admiravam porque era humilde, outros se aproveitavam dessa suposta humildade e o tratavam como algozes tratam mártires; aos chutes, xingamentos e cusparadas. Ninguém sabia que ocupara o dito imóvel decerto esquecido por herdeiros distraídos, pois ao concluir a mendigagem diária, sumia feito um rato pelas gretas e buracos, sem deixar vestígios. Até que um bando de maus elementos conseguiram persegui-lo e descobriram o abrigo. No dia seguinte, interessados em utilizá-lo para o preparo de drogas a serem traficadas, cercaram o pobre maltrapilho numa viela deserta e o obrigaram a abandonar o local, ainda naquela noite. Caso não obedecesse, eles invadiriam na marra e o matariam. Caveira ficou apavorado! Pediu clemência, ajoelhou-se, beijou os pés dos bandidos, mas de nada adiantou. Levou, sim, foi um chute na boca, pela vergonha a que se prestou.

Chegando ao lar secreto – até a noite anterior, pelo menos – foi, como sempre, recebido festivamente pelos cães guardiões, que pulavam frenéticos ao redor de seu magro esqueleto, ávidos pela comida que trazia. Ele protegeu sua sacola plástica com alguns objetos dentro, apertando-a contra o peito, antes de distribuir o alimento. Ah, nada poderiam fazer diante de armas carregadas... Saciados os bichos, trancou-se no fétido recinto. Que lugar sombrio, triste, assustador! Apenas um colchão rasgado e carcomido por roedores sobre o chão batido, um pequeno fogareiro, um filtro escuro de tanto mofo, duas panelinhas e uma caneca. Num canto, uns poucos farrapos amontoados e muitos, muitos jornais velhos, também usados para revestir as frestas nas paredes. Quase todas as páginas eram sobre economia.

Afoitamente, correu para o tal canto onde ficavam os trapos e os vários maços de jornal e os jogou para cima e para os lados, com violência. Embaixo deles... Que inacreditável surpresa! Resplandecia um imenso baú lotado de joias, pedras preciosas, barras de ouro e dinheiro! Com olhos vidrados, Caveira mergulhou em êxtase absoluto, ao contemplar tamanha riqueza. Era como se devorasse com sofreguidão cada peça que cintilava diante de si. Gemia, gemia tal se num orgasmo incrivelmente duradouro, como se transfigurado numa entidade sagrada e soberana que sorvia prazeres sobrenaturais. Derramava as joias e moedas sobre a cabeça, lambia as pedras, apertava, acariciava as barras douradas, como um homem acaricia o corpo de quem o excita. Espalhou os tantos metais, cédulas e pedras preciosas pelo galpão, cobrindo de brilho toda a miséria, tristeza e feiura do lugar. Arrancou seus farrapos e, nu, pendurou colares e pulseiras, amarrou barras de ouro, colou pedras em cada parte do corpo esquálido; dobras, fendas, nas quase inexistentes protuberâncias. Naquele momento, o mundo inteiro se condensava no pequeno espaço, todo feito de maravilhas e alumbramentos, todo luminoso e colorido, todo fartura e regozijo! Faustino rolava sobre seu tesouro, misturando-se a ele como se formassem um único elemento. Raro, valioso, cobiçado elemento... Não, ninguém se apropriaria daqueles seus amores!

Algo diferente aconteceu. Pouco a pouco, um calor insuportável invadiu o local, um ar sufocante trouxe grande incômodo, até que o brilho intenso, quente, esbraseante transformou-se em fogo, muito fogo! A riqueza de Faustino, o Caveira, era comida pelas chamas, quase tão vulnerável como os trapos e jornais. Os preciosos metais fixados em seu corpo se derretiam e se cravavam na pele, formando uma carapaça rutilante e incandescente que o queimava até o mais profundo da essência. Lembrou-se das tantas intrigas, traições e ciladas que tramara, de quando jogou o irmãozinho aleijado no rio para não ter mais com quem dividir escassas atenções e comida, de quando negou socorro à tia solitária e doente, deixando-a morrer, com a intenção de se apropriar de sua esmirrada caderneta de poupança, de ter abandonado mulher e filhos, que consumiam o pouco que juntava, dos incontáveis dias de fome que passara para economizar mais e mais... Tudo voltou à sua mente, feito um turbilhão de... glórias! Sim, agora chegava ao ponto máximo, morria com a nobreza dos superiores, com a pele revestida de preciosidades, tão maior, que até a morte esfomeada tardava em comer-lhe a vida. Sabia, não resistiria por muito tempo, era o fim, mas vivia aquele momento com a intensidade de um deus. Ouvia os cães ganirem desesperados entre o fogo e as grades, resistindo a duras penas e inutilmente, ante o inevitável extermínio. Mas ele não; estava feliz, era um vencedor! Morreria como ninguém jamais morreu, convertido em ouro!

Os tolos pensariam que fora um desgraçado, largado no mundo, podre e fedido como as fezes amontoadas ao fundo daquele lugar, que sofrera com a solidão, com o desprezo dos outros, tudo para acumular uma riqueza da qual jamais desfrutara. Idiotas! Não saberiam que ele morria na mais absoluta felicidade, que a delícia sentida ao adorar sua fortuna era algo impossível de se expressar, tamanha a magnitude. Não precisava de comida, bebida, sexo, de ninguém. Junto às lindas meninas brilhantes, sabia-se cada vez mais amado, protegido, poderoso, invencível, pronto para espremer, com um simples olhar disfarçado de submissão, qualquer covarde escondido por trás da arrogância, que se achasse superior a ele. Quanto aos caridosos que alardeavam seus favores, eram hipócritas demais, mereciam ser enganados; e se divertia por inseri-los na ridícula condição de bobões exibicionistas. Que amaldiçoassem a avareza os que assim desejassem, mas ele a considerava a mais nobre das virtudes, a justificativa de sua existência, o que lhe cobria de radiante orgulho.

O galpão se desfazia vagarosamente. Telhas de amianto, latas, madeiras e tijolos queimados caíam sobre o corpo metálico. Os cães, àquela altura, já estavam carbonizados. Enfim, não suportando mais o calor que lhe fervilhava nervos, músculos e vísceras, abriu os largos braços e gozou, num berro ensurdecedor, derretido e misturado ao imenso tesouro. Em seguida, voltou daquele delírio e sucumbiu sob as labaredas douradas. Ao seu lado, a sacola, um galão de querosene e uma caixa de fósforos destruídos pelo fogo.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 03/12/2013
Reeditado em 13/08/2018
Código do texto: T4596933
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.