DESEJO CEGO
Ao lado do prédio do Instituto dos Cegos na Avenida Bezerra de Menezes, tem uma parada de ônibus e é comum sempre ao meio-dia ver dezenas de deficientes visuais à espera de condução. No meio dessas pessoas, no vai e vem da hora do almoço, nota-se um cego em especial. Ele fica lá por horas, sentado em um dos bancos, talvez à espera de alguém para voltar para casa. Um filho, um amigo, a mulher, quem sabe. O comovente da cena é a posição de humildade dele. A cabeça abaixada, olhos cerrados, as mãos levemente trêmulas segurando a bengala de alumínio entre as pernas, resignado, parecendo estar a perscrutar os sons, os sinais, os cheiros e as vozes ao seu redor. Sabe-se que bem antes ele não era cego. Perdera a visão em uma nefasta e fatídica negociata, que não vem ao caso discorrer aqui nesse momento.
Ao lado dele, também sentado, embora ninguém veja ou perceba, há um anjo em silêncio a observá-lo. Tal anjo teria sido condenado e sentenciado por decretos celestiais a acompanhá-lo diuturna, infatigável e incontestavelmente. Tal e qual, resignado também com a sorte, o anjo sentava-se ali junto dele, impassível, com suas asas enormes jogadas para trás, por cima das grades, numa profusão de matizes furta-cor.
O anjo perguntava-se o porquê daquilo tudo. O homem cego, a quem deveria seguir e observar, mal sabia de sua existência, mal notava a sua angelical presença. Nem em sonhos suporia tal guardião ao seu lado. O anjo questionava-se o porquê dele não ter a permissão de tocá-lo com a ponta de suas asas e devolver-lhe a visão, como se tocava as águas no tanque de Betesda, e assim também, ele se livraria daquele tão solene expediente. Ele bem que poderia cuspir nos dedos e tocar os olhos daquele homem e curá-lo da escuridão, como já fora feito uma vez por outro anjo, há milênios atrás. Porém o anjo não ousava questionar tão alto desígnio, pois sabia das severas punições aplicadas aos que desafiaram ou questionaram as deliberações sacrossantas.
O cego alheio a tudo, miseravelmente só com seus pensamentos, perdido no meio dos reflexos da irreparável cegueira, em suas orações silenciosas, no meio do turbilhão de pessoas no escaldante meio-dia, agradecia a Deus por ter se tornado cego. Era um homem extremamente mau e a perversidade incontrolável dominava a sua alma. Tinha desejos carnais violentíssimos. Não tinha sequer a mínima compaixão pela vida humana.
Todo dia agradecia a Deus por tê-lo cegado definitivamente.