OS OLHOS DO PAI
 
 
                       
Quem chega, olha, faz o sinal da cruz e trata logo de procurar um lugar distante. Uns ainda perguntam, assustados, o que aconteceu, por que isto? Até eu não gosto de olhar. Coisa desagradável. Os olhos estão parados, naturalmente, mas fico com a sensação de que se mexem. Fiz um esforço bárbaro para fechar, mas não consegui. Nem ninguém da família. Eu sei por quê. Aline também. Pedi para ela chamar a menina, dizer que era chegada a hora, que precisava olhá-la mais uma vez.

Mesmo agora, ainda fico com a esperança de que entre na sala, para o último beijo no pai. Saiu tão pequena. Seis meses. Chorei como nunca quando cheguei em casa e soube que tinham levado Estela, a minha estrela. Morreria de fome, disseram. Mas eu trabalhava naquele dia. Trouxe comida, leite para ela e carinho. Tarde demais. Acostumei-me com a dor. Depois, fui perdendo outros. O mesmo motivo: a fome. Um pai miserável, colocando filhos no mundo, sem poder dar comida. Fiz esforço, juro, e não consegui. Calejando pé e mão para botar a boia na panela, nem assim me restou um.

A mulher morreu de desgosto. Bebeu, fumou. O fogo fez o resto. E eu vivendo com a dor agarrada, fazendo estragos, deixando costas curvadas, pés arrastando.

Um dia Estela apareceu. Com outra mãe, com outro pai. Eu quis chorar, mas cadê lágrima? Minha cara era como chão duro, esturricado, com os sulcos que o tempo cavou. Nem uma gota. Minha estrela brilhava, mas não tinha a mesma cor do bebê que dormira nos meus braços, que sorrira com as pernas magrinhas pra cima. Não! Não era a mesma. A que se apresentou tinha cabelos compridos, brilhando, rosto pintado, roupa nova. Bonita. Mas não era a mesma. Deu-me um beijo tímido e saiu. O que dizer? Dois estranhos, nós dois.

Então, nas noites que bebia demais, as imagens se confundiam. Apertava nos braços meu bebê, mas quando ia beijar, era uma moça e virava o rosto. Eu acordava suando, rastejava pelo chão, procurando no barraco a estrela perdida. Dormia ali mesmo, como um rato de esgoto, no porre.

Outros filhos também apareceram, cada um a seu modo, menos um, que a polícia matou. Mas da menina eu não esquecia. Não sei se era pieguice de bêbado, de pai fracassado, da coisa inútil que me tornei. Não sei. Mas tinha vontade de ver minha filhinha mais uma vez. Uma só que fosse.

Então, veio a doença. Poucos dias de vida, disse o doutor. Chamei Aline. Por favor, traz Estela, não quero morrer sem olhar de novo para minha menina. E Estela não veio.

Ainda estou esperando, de olhos abertos. O murmúrio me constrange. Tenho esperança. Ela pode entrar a qualquer minuto.

Agora é tarde. Estão colocando a tampa no caixão. 



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 23/11/2013
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