Por um momento ficou divagando enquanto o professor falava.
Não imaginava como aquele assunto fora abordado em meio a aula de inglês.
Tudo bem que já pensara algumas vezes sobre o assunto, mas certamente, alma gêmea só se via em novelas.Ou será que não?
De qualquer forma, essa história de amor eterno, alma gêmea e outros bichos, era coisa de televisão.
Algo que o colega de classe falou chamou-lhe atenção. Segundo ele, não existia apenas uma alma gêmea. A alma era fragmentada em diversas partes e, durante a vida, poderiam ou não se encontrar. Isso explicaria – continuou ele – o tão aclamado amor à primeira vista.
Se assim fosse, muitas pessoas definitivamente não tinham sorte no amor, pois passavam suas vidas inteiras solitárias ou em relacionamentos destrutivos em busca do amor eterno.
Grande perda de tempo.
O assunto amor foi substituído pelo assunto viagem no tempo.
Aquela aula de inglês estava cada vez mais chapada.
Uma garota, literalmente louca por física quântica,não que existisse tal matéria no colégio, trouxe à baila um assunto no mínimo intrigante.
Questionava ela que, se uma pessoa sonha somente com o que é conhecido, como algumas pessoas podiam sonhar com o futuro?
A sala ficou alvoroçada. Opiniões diversas eram colocadas. O tempo da aula estava acabando. Assim que o sinal tocasse sairia correndo. Tinha diversas tarefas em casa para realizar antes da chegada da mãe. Caso contrário...
Voltou a prestar atenção ao debate. A garota agora lançava uma teoria interessante.
Segundo ela, existiam janelas, espécies de portais, que se abriam em determinadas situações, deixando entrever partes do futuro, ou melhor, do passado. Pois, uma vez que o cérebro só fabricava sonhos a partir da realidade, a explicação mais lógica seria a de que o momento sonhado e repetido no futuro certamente já fora vivido antes.
Outras teorias foram levantadas, mas ela já não prestava atenção. Estava na expectativa do encerramento das atividades escolares daquele dia estranho.
Saiu correndo do colégio mal o início do toque indicando o final das aulas.
Precisava chegar à casa antes da mãe.
Colocou a mochila pesada nas costas sem observar o trânsito formado pelos carros dos pais dos outros alunos e das vans escolares.
Olhou para o relógio de pulso. Quase uma da tarde. Teria pouco mais de meia-hora para deixar a casa em ordem antes da chegada da mãe.
Apertou o passo e atravessou a avenida sem olhar.Mais ouviu do que sentiu a freada do carro. Ficou olhando para um pneu.Como acabara no chão?
Tentou se levantar. A cabeça girou. Ouviu um barulho de porta batendo. Teve consciência de vários curiosos a olharem-na sem nada dizer.
Um estranho com rosto bonito abriu caminho e agachou-se a seu lado. O motorista?
Sua confusão mental era enorme. Não conseguia lembrar-se de onde estava, tão pouco quem era.
O estranho falava alguma coisa. Não conseguia ouvir nada. Algo viscoso tapava seu ouvido.Como se não bastasse, suas costas ardiam de dor.
Uma vez mais tentou se mexer. Dessa vez para ficar de lado. Alguém a impediu.
Ouviu sirenes. Um celular tocou. Tiraram fotos.
Mãos a tocavam procurando retirar a mochila de suas costas. Sua mãe ficaria zangada se soubesse. Mãe? Qual era mesmo o nome da mãe? Não atinava qual seria.
Percebeu uma mão enluvada prender sua cabeça com uma faixa prateada. Aquela luva lembrava a que usava para limpar a pia, mania de sua mãe enfermeira.
Sua mãe era enfermeira, lembrou-se. Mas qual seu nome? Nem imaginava. Só sabia que tiha mania de limpeza. Santo Deus! Precisava limpar a casa.
Abriu a boca para falar que não precisavam se preocupar, pois estava bem. Só precisava levantar e ir para casa antes da mãe chegar. Se a mãe chegasse, nem sabia o que seria dessa vez.
Uma lembrança cruzou-lhe a mente. A mãe estava nervosa. Esbravejava ao mesmo tempo que mostrava a pia. Apertou bem os olhos para saber o que havia de errado com a pia. Ouviu a pessoa com a luva dizer que ela devia estar com dor de cabeça. Tentou negar, mas não emitiu nenhuma palavra. Estava sem voz. Como falaria para aquelas pessoas onde morava? Poderiam chamar seu pai e... Não. Não poderiam chamar o pai. Ele não morava com a mãe já algum tempo.
Cansou-se de apanhar de vassoura.O pai apanhava? De onde tirara aquilo, pelo amor de Deus. Estaria delirando?
Pessoas pegaram nas dobras de suas pernas e outras nas costas. Onde estaria a mochila? Não sentia a mochila nas costas. Aliás, não sentia mais a dor nas costas. Bem que podiam deixá-la ir para casa. Onde morava mesmo?
Algo quente molhou sua calça de moletom.Que droga! Só faltava essa! Seria urina?
Talvez não. Possivelmente água do asfalto quente ou algo assim.
Sentiu seu corpo ser levantado e colocado numa tábua dura e desconfortável. Seus braços, imobilizados,doíam.
Que sede. Queria muito um copo de água bem gelada nesse momento.
Sono. Um sono bem difícil de ignorar fechavam-lhe os olhos. Não! Não poderia dormir.Precisava saber para onde aquelas pessoas estranhas a estavam levando.
Um baque e estava dentro de um veículo.Sentia o movimento frenético do carro,mas não sabia qual era o carro. Seria uma ambulância? Usou de muita concentração para ouvir os sons de fora.Nada.Tudo era silêncio. Fora e dentro do veículo.
Não bastasse o silêncio perturbador, a escuridão veio para atormentar-lhe a mente ainda confusa.
Não gostava da escuridão. A mãe costumava colocá-la de castigo dentro de um armário escuro trancado por fora. Horas depois a soltava e a mandava arrumar alguma coisa na casa.
Aquela mulher seria mesmo sua mãe? Já não tinha certeza de nada. Queira muito fechar os olhos.O estranho não deixava.Ficava lhe sacudindo os ombros e pedindo para que olhasse para ele.Mas como, se não havia um raio de luz naquela escuridão?
Será que um neutrino viajaria mais rápido do que a luz? O que era mesmo um neutrino?
Buscou na mente entorpecida alguma resposta para aquela pergunta.
Com alívio lembrou-se de que um neutrino era uma carga subatômica neutra e que sim, sua velocidade poderia ser maior do que a velocidade da luz. Ficou feliz por se recordar da aula de física da semana passada, embora a lembrança trouxesse recordações nada agradáveis.
Estava sentada em seu quarto estudando para a prova de física, sua matéria favorita, quando a mãe entrara aos gritos. Como pudera esquecer de lavar o pano de chão?
Na ansiedade de estudar, esquecera completamente de tirar o pano usado do balde e lavá-lo.
A mãe reclamaria a semana inteira por esse deslize.
Para sua surpresa e pesar, a mãe não reclamara tanto e nem a castigara fisicamente. No entanto, com um olhar raivoso, retirou-lhe das mãos o livro de física e o jogara dentro do balde com água suja...E o pano.
No futuro ela se lembraria de fazer as tarefas direito. Bateu a porta e trancou-a no quarto.Perdera a prova do dia seguinte.
A coordenado pediu que um de seus pais assinasse a autorização para segunda chamada da prova. A mãe não assinara e o pai não morava em casa com elas.
Chegou a pensar em assinar no lugar da mãe, mas o risco era enorme e sequer lembrava o nome da mãe. Não daria certo.
Respirou fundo. O ar não veio. Sentiu-se sufocar.
Algo foi colocado em seu nariz. O pulmão ardeu e se encheu de ar.
A escuridão imperava.Queria pedir para acenderem a luz ou pelo menos uma lanterna.
Estava aterrorizada com o escuro. A ansiedade provocou uma dor lancinante no peito.
Sentiu seu corpo franzino elevar-se acima da tábua em que deitava. Uma. Duas vezes. Ou seriam mais?
De repente não queria mais voltar para casa.
Estava cansada de lavar, passar, cozinhar e apanhar quando algo não estava a contento de sua mãe. Geralmente não estava.
Queria um vestido novo. Uma fita prateada para os cabelos... Prateada não. Lembrar-se-ia daquela faixa na cabeça. Uma fita dourada, talvez. E se fossa dada pelo estranho que se agachara perto dela no asfalto, melhor.
Quanta bobeira – pensou frustrada – obviamente o estranho já estava em casa com sua mãe de contos de fada a preparar-lhe um gostoso almoço com suco de frutas e sobremesa.
Existiria mãe assim? Esperava que sim. Seria muito triste existir mães como a sua.
Pensou na mãe. Agora não lembrava seu nome e nem seu rosto. Que ótimo – ironizou em pensamento – definitivamente estava perdendo a memória.
O veículo parou. Tudo ainda estava escuro, mas ela começava a perceber alguns sons. Vozes. Sobretudo vozes que não se faziam entender. Sentiu-se carregada do veículo para alguma outra coisa. Uma mesa? Sentiu movimentar-se rapidamente. Uma mesa com rodinhas? Uma maca?
As vozes falavam coisas sem parar, mas não atinava com o significado das palavras.Tudo ainda era confuso. Sentiu o braço arder. O sono voltava com mais força. Não resistiu. Caiu em sono profundo e não ouviu mais nada.
Acordou de repente. Sentou-se assustada na cama. Gritou de susto com a moça parada a meio metro a sua frente. A moça também se assustara, pois imitara-lhe o gesto de levar a mão à boca devido ao susto.
Ela usava um lindo vestido esvoaçante e azul. Tinha uma fita dourada nos cabelos. Quem seria ela? Abaixou a mão e a moça fez o mesmo. Estaria ela imitando-a deliberadamente?
Inclinou a cabeça de lado e a moça fez o mesmo.Mostrou a língua e mais uma vez foi imitada. Chegou a uma óbvia conclusão. Tratava-se de um espelho.
Seria possível? Hesitante, levantou-se da cama. Caminhou até o espelho. Tocou-o. A superfície lisa e límpida estava fria.
Colocou a mão na boca para esconder o tímido sorriso.Sim.Realmente era um espelho. A bela moça era ela.
Feliz, rodopiou pelo amplo quarto olhando sua imagem refletida.Parou abruptamente. Aquela não podia ser ela. Correu novamente para o espelho.Dessa vez sem medo ou espanto.Olhou para aqueles olhos. Como os seus eram castanhos, mas a semelhança acabava por ai.
Os cabelos que tinha na memória como sendo os seus, eram castanhos e anelados. Chegavam até os ombros. A moça do reflexo tinha longos cabelos lisos e pretos, tão escuros que destacavam nitidamente a fita amarela usada para não deixá-lo cair sobre seus olhos.
A altura era outra grande diferença. Enquanto em sua memória via-se como uma pequena e franzina garota tímida, o espelho mostrava-lhe uma esbelta e alta moça com olhar confiante. Quem era ela? A moça da lembrança ou a moça do espelho?
Não sabia. Estaria ficando louca?
Lentamente a porta do quarto começou a se abrir.
Aquela porta poderia ser as respostas para suas dúvidas. Talvez.
Um feixe de luz iluminou o chão do quarto. Pela primeira vez até então, reparou que estava na penumbra. Sequer cogitara encontrar o interruptor e acender a lâmpada.
Voltou sua atenção para a porta que se abriu totalmente. Não conseguiu ver o que tinha do lado de fora do quarto, pois uma senhora rechonchuda com uma bandeja na mão fechou a porta tão logo entrou no quarto.
—Buon giorno, dormigliona – a mulher estava falando com ela? Em italiano?
—Buon giorno, Cícera.
Colocou a mão na fronte. Ela respondera mesmo ao cumprimento de Cícera em italiano?
Aquilo estava mais que estranho. Como ela sabia do nome da senhora com ar bonachão que acabara de entrar no quarto? Que quarto era aquele?Onde estava afinal? Como chegara até ali?
Cícera estava falando sobre o sucesso da festa de noivado do dia anterior. Todos em Verona estavam encantados com o que toda a imprensa italiana estava chamando de o casamento do século.
Noivado? De quem? Pressentia que teria uma de suas terríveis enxaquecas.
Cícera listava agora todas as virtudes de um tal signore Passarelli com uma determinação que estava começando a irritá-la. Estaria ela falando de Vincenzo Passarelli? O odiável, arrogante e intratável concorrente de seu pai no ramo de vinhos nobres? Só de lembrar do tratante sentia o estômago arder em fúria.
Sentou-se na cama. O que estava acontecendo com ela? Seu pai não era dono de vinhedo e ela não conhecia nenhum Vincenzo. Conhecia?
—Signorina? Cícera tocou-lhe a testa com ar maternal. Deu-lhe um copo com suco de laranja e duas aspirinas.
Pelo jeito as terríveis dores de cabeça ainda existiam naquele mundo paralelo em que ela caíra de paraquedas.
Pediu um calmante a Cícera. Precisava descansar. Tudo o mais teria que esperar. Não sabia ao certo se estava alucinando ou se endoidara de vez. Poderia até mesmo estar em coma no hospital ou tendo um sonho esquisito. Pois, bem. Dormiria naquele sonho maluco e acordaria na sua vida real.
Antes de ceder ao sono pensou se realmente gostaria de acordar para sua vida solitária e medonha.
Sentou-se de repente na cama. A primeira coisa que observou era de que estava naquele mesmo quarto com o espelho.
A segunda era que não lembrava qual era seu nome em nenhuma de suas duas vidas.
A terceira era que tinha um homem de costas para a janela balcão enorme entalhada em mogno. Como ela sabia que a janela era feita de mogno só aumentava sua lista de mistérios indecifráveis até o momento.
O homem continuava de costas. Ela esticou o pescoço para ver o que tanto ele contemplava.
Só conseguiu ver um monte bem ao fundo e algum tipo de vegetação próxima à janela.
O homem trajava um terno claro que se moldava perfeitamente a seu corpo atlético. Corte italiano – pensou sarcasticamente.
Aliás, tudo nele exalava Itália. Desde os cabelos escuros espessos até os sapatos sociais de aparência cara.
O homem se virou para ela.
—Vejo que acordou, cara mia.
Impactantes. Foi a primeira palavra que lhe veio à mente ao sentir-se presa sob o peso daquele olhar cor de ébano polido.
Sentiu uma vontade louca de rir histericamente. — Depende do ponto de vista –respondeu mordendo a parte interior da bochecha para não disparar a rir.
Ele arqueou a sobrancelha bem feita. —Vou aceitar isso como um elogio.Tomei a liberdade de trazer-lhe outra bandeja de desjejum.
A ênfase em outra não lhe passou despercebida.
Espantada, notou que a bandeja era na verdade um carrinho com um almoço completo. Caminhou até o carrinho e abriu cada um dos réchauds. Além de frutas e saladas havia também diversos pratos quentes, os quais seriam acompanhados de vinho tinto suave.
Pegou uma garrafa e leu o rótulo. Vinhedo Passarelli e Cesário?
Vincenzo tomou a garrafa de sua mão, abrindo-a habilmente. Pegou uma das taças e despejou o líquido tinto e aromático com delicadeza.
—Experimente – ofereceu a ela– é da nova safra.
Depois de uma breve hesitação, ela aceitou a taça. Seu olhar era contemplativo.
—A ordem do nome realmente não importa, já que você em breve será uma Passarelli.
Que ótimo – pensou com ironia enquanto ele devolvia a garrafa de vinho a seu suporte em cima do carrinho – além de tudo o grande Vincenzo lia pensamento?
—Vou ser é? – perguntou ela ao se dar conta da insinuação contida na afirmação dele.
Um brilho feroz surgiu nos olhos dele. —Pensei que esse assunto já estivesse resolvido.
—Por quem? Você e meu pai?
—Exatamente – ele cruzou os braços. — Esse assunto foi discutido à exaustão pelas partes interessadas.
Ela colocou a taça intocada de volta na mesa-carrinho.
—Nesse caso, por que eu tenho que ser uma Passarelli? Basta que as partes interessadas firmem um acordo de sociedade e voilà : Cesário & Passarelli.
Vincenzo deu um longo e exagerado suspiro.
—Por que você sempre faz isso?
—Isso o quê? – perguntou afastando-se de Vincenzo à medida que ele se aproximava.
—Está vendo? Fez de novo! Vincenzo estreitou os olhos. Ela já estava começando a reconhecer cada gesto dele. Isso definitivamente era péssimo sinal. — Você é irritante, intratável, arrogante...
—Puxa! Não sabia que a gente tinha tanta coisa em comum afinal – ela o interrompeu, arrependendo-se em seguida ao ver a fúria daqueles olhos tempestuosos.
—E malcriada– continuou ele indiferente à interrupção. Nosso casamento dar-lhe-á bons modos. Além de tirar seu pai da moratória.
Agora ele estava a um passo de distância dela. Sentiu a boca seca e os batimentos cardíacos enlouquecidos.Quase não ouvia mais o que ele estava falando.
—Como assim moratória? Estava perplexa. Seu pai estava com dívidas a ponto de fazer um acordo com seu mais odiado concorrente?
—Si, cara mia. Seu pai deve bilhões aos bancos.
—Por que então você simplesmente não vira sócio majoritário de meu pai e me inclua fora dessa?
Vincenzo estreitou novamente os olhos. —Seus modos definitivamente estão péssimos. Jamais deveria ter-lhe dado permissão para desfrutar férias no Brasil.
—Dar-me permissão, é? Com qual direito?Sequer somos casados, caríssimo.
Um sorriso de escárnio surgiu naquele rosto moreno e másculo. Vincenzo foi até a porta.
—Giácomo!
Imediatemente um homem de terno e gravata apareceu. Após receber uma ordem de Vincenzo que ela não conseguiu ouvir, desapareceu de seu campo de visão.
—O homem na porta é para minha proteção ou para garantir que eu não fuja?– perguntou zombeteira assim que ele voltou com uma pasta de couro na mão.
—Digamos que Giácomo tem o dever de proteger meu investimento.
—Os vinhedos? Não seria mais fácil se ele ficasse lá fora?–sorriu inocentemente.
Vincenzo estreitou novamente os olhos. —Tome– estendeu-lhe o conteúdo da pasta. —Refresque sua memória.
Ela aceitou o documento.
Tratava-se de um contrato discorrendo sobre a junção dos vinhedos concorrentes pelo casamento de Isabella di Cesário – ela?– e Vincenzo Passarelli.
Vincenzo observava com interesse as expressões que ela fazia enquanto lia o contrato assinado e reconhecido entre as partes interessadas e do valor exorbitante por quebra de contrato que a parte infratora deveria pagar, se houvesse quebra.
Vincenzo sorriu levemente. Não haveria quebra.
—Uau! – disse ela devolvendo o contrato a Vincenzo. —Você pensou em tudo.Diga-me uma coisa,Vincenzo...
—O que deseja saber, Bella?
Bella? Nada mal para quem sequer nome tinha.
—Qual meu papel nesse contrato?
Vincenzo cruzou os braços e afastou as pernas. Uma típica postura masculina de “pronto para o contra-ataque”.
—O papel de minha esposa. Vincenzo levantou a mão para impedir as possíveis argumentações de Isabella. —Não pense nem por um minuto que esse será um papel fácil.
—Nunca imaginei que concordaria com seu ponto de vista.
—Bella... Ele praticamente rosnou para ela.
—Acredite em mim quando digo que esse seu modo de me provocar vai ser pior para você.
—Quer saber? –Bella perguntou dirigindo-se ao carrinho de comida– estou com fome.
Vincenzo a olhou desconfiado. Não conseguia entender sua futura esposa. Não que alguma vez a houvesse decifrado. Impossibile – pensou– Bella era praticamente uma esfinge. Decífra-me ou te devoro. Embora ser devorado por Bella não seria nada mau.
Esqueça isso, Vincenzo – ralhou consigo– você batalhou muito por esse momento. Não vá por tudo a perder.
Bella experimentava a comida com deleite. A cada porção que levava à boca, fechava os olhos e gemia de prazer. Aquilo o estava levando à loucura. Observou Bella com redobrada atenção. Todos seus poros estavam conscientes dela. Seu rosto oval bem delicado, seus olhos amendoados, sua pele tom de mel.Sempre desejou sentir o sabor daquela pele.Ele e muitos outros. Tirara muitos possíveis candidatos do caminho de Bella antes mesmo que ela percebesse o interesse dos desavisados.
Reparou na camisola azul esvoaçante que ela usava. Nunca imaginou que ela usaria a camisola que ele comprara para ela depois de uma das muitas brigas que tiveram sobre igualdade de direitos e sobre não aceitar presentes de homens arrogantes e patéticos como ele.
A briga gerara uma aposta. Ela aceitou sem pestanejar.Deveria cobrá-la?
Não. Melhor agir como o cavalheiro que era e deixar a aposta para lá.
Aos diabos com o cavalherismo!Era um homem afinal, e Bella era praticamente sua esposa.
Sentindo-se observada, Bella abaixou o garfo com um morango vermelho enorme coberto de chantilly e olhou diretamente para os olhos escuros de Vincenzo.
—O que foi? – perguntou aflita e meio sem jeito pelo escrutínio daquele olhar.
Vincenzo calmamente recostou-se à coluna da cama e a olhou de cima a baixo. —Bonita camisola.
Como um filme exibido em alta velocidade, imagens surgiram na mente de Bella e ela ficou extremamente pálida.
Vincenzo sorriu enquanto servia-se do vinho.
—Vejo que se lembrou da aposta – tomou um gole de vinho, enquanto a observava atentamente – delicioso.
Não sabia como, mas se lembrava nitidamente do encontro de produtores de vinho da região do Vêneto, do encontro com Vincenzo enquanto conversava com um amigo numa mesa de rua na praça delle Erbe e de como esse amigo saiu quase correndo quando Vincenzo o olhou com seu olhar feroz e tomou-lhe o lugar.
Sem saber como, passaram de uma conversa totalmente hostil sobre igualdade de direitos entre homens e mulheres para uma ainda mais hostil conversa sobre como as mulheres se sujeitavam a receber presentinhos de seus supostos amigos pelo tempo em que ficaram juntos num relacionamento.Para Isabella aquilo tinha outro nome.
Foi então que Vincenzo, descarademente, fizera-lhe a proposta.Compraria para ela uma camisola discreta, porém bonita e sensual e se ela a usasse daria o direito a ele de pedir-lhe qualquer coisa.
Isabella não titubeou.
Jamais usaria a camisola e qualquer outra coisa que viesse de Vincenzo.
Com um sorriso malicioso, Vincenzo pegou seu celular e falou uns poucos segundos com alguém. Menos de cinco minutos depois seu segurança particular entregava-lhe um pacote todo elaborado. Dentro do pacote, a camisola.
Quando ela o olhara com uma interrogação no rosto, ele apenas dera de ombros e dissera que havia visto a camisola de relance e concluído que poderia ser um bom presente para uma de suas amantes.
Aquilo deixou Bella furiosa. Aceitara a aposta sem prazo e sem pedir nada, pois já que nunca usaria tal indumentária, não faria sentido exigir algum prêmio.Mesmo porque não toleraria nada que viesse de Vincenzo.
Agora lá estava ela encarando aquele sorriso idiota no rosto dele. Lembrou-se também de que nunca descumpria sua palavra. Agora era enfrentar as consequências de sua tolice. Ergueu o queixo e encarou seu oponente.
—Embora não tenha ideia sobre como essa camisola veio parar em mim, não sou de fugir das consequências de meus atos. O que deseja?
Tudo – pensou Vincenzo – seu corpo, sua mente, seu coração, sua alma. Respirou fundo. Precisava ir com calma ou a fera que sabia existir nele iria emergir.
—No momento somente um abraço e uns poucos beijos.
Bella arqueou as sobrancelhas.—Só isso?
Vincenzo sorriu divertido.—Decepcionada?
O olhar que Isabella lançou-lhe indicou que deveria redobrar os cuidadoso ou sua irascível futura esposa arrancar-lhe-ia os olhos.
— Então? – perguntou cauteloso, servindo-se de mais vinho.
—Vamos acabar logo com isso.
Vincenzo colocou a taça novamente no carrinho e recostou-se novamente à coluna da cama.
Irritada, Bella colocou as mãos na cintura.
—Então?
—Venha até aqui.
Bella o olhou furiosa. —Para quê facilitar quando se pode complicar, não é mesmo?
Vincenzo sorriu. Aquilo estava saindo melhor do que a encomenda.—Nunca disse que seria fácil. Meus termos, lembra-se?
Não, Bella pensou, mas com os diabos com isso!
Saía de uma encrenca a outra com uma velocidade incrível e até agora não sabia se aquilo era sonho ou uma mera alucinação devido ao atropelamento.
Aproximou-se lentamente de Vincenzo. Pensaria em sua confusão mental mais tarde.Agora precisava pagar uma aposta.
Vincenzo observava a aproximação de Bella com ansiedade anormal.Sua respiração estava suspensa e a artéria em seu pescoço pulsava freneticamente, mas não daria a Bella o gostinho de saber de seu tormento. Ela não teria um grama de poder sobre ele.
Bella se aproximou até encostar os dedos descalços em seus pés.Ergueu a mão e tocou seu cabelo. O toque tímido e hesitante quase o desestabilizou. Engoliu em seco a espero do próximo ato.
Bella não o decepcionou.Traçou uma linha de sua cabeça, passando os dedos por seu pescoço e espalmando a mão em sua nuca.Ficou dedilhando ali. O tempo todo olhando-o nos olhos.
Isabella estava confusa. Pensou ver a vitória estampada nos olhos de Vincenzo, mas o que viu foi expectativa e um certo receio. Dela? Como um homem com tanta força e poder teria receio de alguém como ela que nem sabia quem era ou de onde viera?
Talvez tudo não passasse de um sonho e quando acordasse para sua vida triste, solitária e humilhante, sentisse falta desse homem que estava prestes a beijar.Já que iria acordar mesmo, o que tinha a perder?
Isabella puxou a cabeça de Vincenzo em direção à sua e o beijo aconteceu.
Ambos se reconhecendo a princípio, sem pressa.Sentiu a mão de Vincenzo puxá-la pela cintura para mais perto dele enquanto a outra mão subia e descia por suas costas a ponto de fazê-la sentir cócegas.
Conforme a mão dele massageava sua coluna, Isabella aproximava-se mais dele roçando o corpo no dele.Ela não queria,mas não conseguia evitar.Sentia cócegas e uma dor de estômago esquisita que a fazia ansiar por mais.
Vincenzo percebeu intensamente o roçar do corpo feminino no seu e isso o estava enlouquecendo.Passou a massageá-la mais intensamente conforme aprofundava o beijo. O melhor beijo de toda sua vida. Sabia por instinto que beijar Isabella seria glorioso. Deixou os lábios macios para beijá-la no pescoço.
—Dío Santo! Isabella murmurou.
—Eu sei, amore mio. Vincenzo a mordiscou na orelha e Bella, como guiada por outra pessoa, ergueu seu pé descalço e o passou na perna de Vincenzo. Ele gemeu.
Isabella, encorajada por aquele som estimulante buscou-lhe novamente a boca e Vincenzo desceu a mão abaixo de sua coluna lombar, puxando-a ainda mais para si a fim de mostrar-lhe a evidência de seu desejo.
—Vince, per favore... A súplica de Bella era praticamente um suspiro.
—Sí,eu sei, piccola mia. Logo a livrarei desse anseio.
Vincenzo a tomou no colo e a carregou para a cama.Em nenhum momento deixou de beijá-la.
Uma batida insistente na porta evitou que Vincenzo passasse dos limites com Bella no dia de seu casamento.
Deu um rápido beijo em Bella e se dirigiu à porta. Agora faltava pouco. Poderia esperar.
Abriu a porta. O pai de Bella. Ridiculamente Vincenzo sentiu-se constrangido.
—Signore di Cesário. Vincenzo deu passagem para que o futuro sogro entrasse.
—Pode me chamar de babbo, já que daqui a menos de uma hora você será mi figlio.
—Poucas horas? Como assim papà? Bella pulou da cama irritada com o olhar de divertimento do pai.
—Sí figlia. Daqui a exatos 45 minutos você será uma mulher casada.
—Mas,papà! Como vou me arrumar em 45 minutos?
Vincenzo saiu discretamente. Precisava se recompor. Quando visse Bella novamente ,ela estaria caminhando em sua direção no altar montado no grande jardim cercado pelas videiras.
Cesário aproximou-se da filha. —Basta que você use isto. O pai estendeu-lhe uma linda tiara de diamantes.—Sua mãe a usou no dia de nosso casamento e trouxe-nos tanta felicidade que tenho certeza o mesmo ocorrerá com você e Vincenzo.
Isabella olhou a tiara. Lágrimas silenciosas desciam por seu rosto.Sua querida mãe.
O pai tocou-lhe delicadamente o queixo.—Tenho certeza que ela estaria radiante de felicidade por este dia.
—Ela está,papà. Tenho certeza disso.
—Minha bambina. O pai a abraçou fortemente. Afastando-se, enxugou discretamente as lágrimas e abriu a porta para um batalhão de serviçais.
—Estarei do lado de fora esperando para levá-la ao altar.
Bella iria dizer algo ao pai antes de sua saída, mas o batalhão de moças a levaram para uma luxuosa banheira no cômodo anexo. Em instantes foi lavada, penteada, maquiada e vestida .Olhou-se no espelho. Pensou ter visto o rosto de outra moça, tão radiante quanto o dela.
A tiara emprestava um brilho especial a seus olhos. Ou seria reflexo da felicidade que estava sentindo? Não sabia,mas isso não importava.Sua nova vida estava prestes a recomeçar ao lado do homem que amava.
Sorriu ironicamente para o espelho. Amava Vincenzo desde sempre, mas ele não precisava saber disso. Pelo menos não naquele momento. Teriam a vida toda para que ele descobrisse.
Seu sorriso alargou-se. Ela dar-lhe-ia inúmeras pistas.
O pai bateu na porta e entrou.—Pronta?
Isabella virou-se radiante para o pai. Cesário estava orgulhoso e definitivamente muito comovido.—Você está tão linda quanto sua mãe no dia de nosso casamento. Vamos?Ofereceu-lhe o braço.
Bella coloou a mão no braço do pai e juntos saíram do quarto, deixando as moças suspirando.
Ao chegarem ao jardim linda e ricamente enfeitado, a marcha nupcial começou a tocar.Olhando aquele mar de rostos, Bella teve a impressão de estar esquecendo-se de alguma coisa importante. Porém, ao olhar para Vincenzo no altar, todo pensamento que não fosse o homem a sua espera, esvaiu-se como fumaça.
Vioncenzo não cabia em si de felicidade e orgulho.Finalmente todos os seus esforços para ter sua alma gêmea consigo valera à pena. Jamais a deixaria fugir dele.Estariam juntos a partir daquele momento em diante.
Vincenzo recebeu Bella das mãos de seu pai e o cumprimentou.
Ajoelhados diante do padre, Vince e Bella proferiam seus votos de amor,respeito e dedicação.
Bem longe dali, um derradeiro sorriso surgia no rosto de uma meiga moça inconsciente, atropelada no final daquela manhã, tendo como testemunha o moço estranho que a socorreu.
Ainda não encontrara o motorista do carro, nem a mãe da garota. Ambos quando fossem encontrados seriam presos. Ele mesmo se encarregaria disso.
Bella e Vince estavam casados. A madrinha devolveu-lhe o buquê de rosas vermelhas num laço dourado.Bella franziu a testa.
—O que foi, amore mio? Vince levou a mão com a aliança aos lábios para um cálido beijo.
—Nada. Apenas um djavù. Olhou apaixonadamente para o marido. —Devo jogar o buquê? –perguntou sapeca.
Vince olhou para os rostos em expectativas das solteiras presentes.
—Definitivamente deve.
Bella virou-se de costas e jogou o buquê.
Em algum lugar naquele exato momento uma vida se findava.
A vida de Bella estava apenas começando.
Não imaginava como aquele assunto fora abordado em meio a aula de inglês.
Tudo bem que já pensara algumas vezes sobre o assunto, mas certamente, alma gêmea só se via em novelas.Ou será que não?
De qualquer forma, essa história de amor eterno, alma gêmea e outros bichos, era coisa de televisão.
Algo que o colega de classe falou chamou-lhe atenção. Segundo ele, não existia apenas uma alma gêmea. A alma era fragmentada em diversas partes e, durante a vida, poderiam ou não se encontrar. Isso explicaria – continuou ele – o tão aclamado amor à primeira vista.
Se assim fosse, muitas pessoas definitivamente não tinham sorte no amor, pois passavam suas vidas inteiras solitárias ou em relacionamentos destrutivos em busca do amor eterno.
Grande perda de tempo.
O assunto amor foi substituído pelo assunto viagem no tempo.
Aquela aula de inglês estava cada vez mais chapada.
Uma garota, literalmente louca por física quântica,não que existisse tal matéria no colégio, trouxe à baila um assunto no mínimo intrigante.
Questionava ela que, se uma pessoa sonha somente com o que é conhecido, como algumas pessoas podiam sonhar com o futuro?
A sala ficou alvoroçada. Opiniões diversas eram colocadas. O tempo da aula estava acabando. Assim que o sinal tocasse sairia correndo. Tinha diversas tarefas em casa para realizar antes da chegada da mãe. Caso contrário...
Voltou a prestar atenção ao debate. A garota agora lançava uma teoria interessante.
Segundo ela, existiam janelas, espécies de portais, que se abriam em determinadas situações, deixando entrever partes do futuro, ou melhor, do passado. Pois, uma vez que o cérebro só fabricava sonhos a partir da realidade, a explicação mais lógica seria a de que o momento sonhado e repetido no futuro certamente já fora vivido antes.
Outras teorias foram levantadas, mas ela já não prestava atenção. Estava na expectativa do encerramento das atividades escolares daquele dia estranho.
Saiu correndo do colégio mal o início do toque indicando o final das aulas.
Precisava chegar à casa antes da mãe.
Colocou a mochila pesada nas costas sem observar o trânsito formado pelos carros dos pais dos outros alunos e das vans escolares.
Olhou para o relógio de pulso. Quase uma da tarde. Teria pouco mais de meia-hora para deixar a casa em ordem antes da chegada da mãe.
Apertou o passo e atravessou a avenida sem olhar.Mais ouviu do que sentiu a freada do carro. Ficou olhando para um pneu.Como acabara no chão?
Tentou se levantar. A cabeça girou. Ouviu um barulho de porta batendo. Teve consciência de vários curiosos a olharem-na sem nada dizer.
Um estranho com rosto bonito abriu caminho e agachou-se a seu lado. O motorista?
Sua confusão mental era enorme. Não conseguia lembrar-se de onde estava, tão pouco quem era.
O estranho falava alguma coisa. Não conseguia ouvir nada. Algo viscoso tapava seu ouvido.Como se não bastasse, suas costas ardiam de dor.
Uma vez mais tentou se mexer. Dessa vez para ficar de lado. Alguém a impediu.
Ouviu sirenes. Um celular tocou. Tiraram fotos.
Mãos a tocavam procurando retirar a mochila de suas costas. Sua mãe ficaria zangada se soubesse. Mãe? Qual era mesmo o nome da mãe? Não atinava qual seria.
Percebeu uma mão enluvada prender sua cabeça com uma faixa prateada. Aquela luva lembrava a que usava para limpar a pia, mania de sua mãe enfermeira.
Sua mãe era enfermeira, lembrou-se. Mas qual seu nome? Nem imaginava. Só sabia que tiha mania de limpeza. Santo Deus! Precisava limpar a casa.
Abriu a boca para falar que não precisavam se preocupar, pois estava bem. Só precisava levantar e ir para casa antes da mãe chegar. Se a mãe chegasse, nem sabia o que seria dessa vez.
Uma lembrança cruzou-lhe a mente. A mãe estava nervosa. Esbravejava ao mesmo tempo que mostrava a pia. Apertou bem os olhos para saber o que havia de errado com a pia. Ouviu a pessoa com a luva dizer que ela devia estar com dor de cabeça. Tentou negar, mas não emitiu nenhuma palavra. Estava sem voz. Como falaria para aquelas pessoas onde morava? Poderiam chamar seu pai e... Não. Não poderiam chamar o pai. Ele não morava com a mãe já algum tempo.
Cansou-se de apanhar de vassoura.O pai apanhava? De onde tirara aquilo, pelo amor de Deus. Estaria delirando?
Pessoas pegaram nas dobras de suas pernas e outras nas costas. Onde estaria a mochila? Não sentia a mochila nas costas. Aliás, não sentia mais a dor nas costas. Bem que podiam deixá-la ir para casa. Onde morava mesmo?
Algo quente molhou sua calça de moletom.Que droga! Só faltava essa! Seria urina?
Talvez não. Possivelmente água do asfalto quente ou algo assim.
Sentiu seu corpo ser levantado e colocado numa tábua dura e desconfortável. Seus braços, imobilizados,doíam.
Que sede. Queria muito um copo de água bem gelada nesse momento.
Sono. Um sono bem difícil de ignorar fechavam-lhe os olhos. Não! Não poderia dormir.Precisava saber para onde aquelas pessoas estranhas a estavam levando.
Um baque e estava dentro de um veículo.Sentia o movimento frenético do carro,mas não sabia qual era o carro. Seria uma ambulância? Usou de muita concentração para ouvir os sons de fora.Nada.Tudo era silêncio. Fora e dentro do veículo.
Não bastasse o silêncio perturbador, a escuridão veio para atormentar-lhe a mente ainda confusa.
Não gostava da escuridão. A mãe costumava colocá-la de castigo dentro de um armário escuro trancado por fora. Horas depois a soltava e a mandava arrumar alguma coisa na casa.
Aquela mulher seria mesmo sua mãe? Já não tinha certeza de nada. Queira muito fechar os olhos.O estranho não deixava.Ficava lhe sacudindo os ombros e pedindo para que olhasse para ele.Mas como, se não havia um raio de luz naquela escuridão?
Será que um neutrino viajaria mais rápido do que a luz? O que era mesmo um neutrino?
Buscou na mente entorpecida alguma resposta para aquela pergunta.
Com alívio lembrou-se de que um neutrino era uma carga subatômica neutra e que sim, sua velocidade poderia ser maior do que a velocidade da luz. Ficou feliz por se recordar da aula de física da semana passada, embora a lembrança trouxesse recordações nada agradáveis.
Estava sentada em seu quarto estudando para a prova de física, sua matéria favorita, quando a mãe entrara aos gritos. Como pudera esquecer de lavar o pano de chão?
Na ansiedade de estudar, esquecera completamente de tirar o pano usado do balde e lavá-lo.
A mãe reclamaria a semana inteira por esse deslize.
Para sua surpresa e pesar, a mãe não reclamara tanto e nem a castigara fisicamente. No entanto, com um olhar raivoso, retirou-lhe das mãos o livro de física e o jogara dentro do balde com água suja...E o pano.
No futuro ela se lembraria de fazer as tarefas direito. Bateu a porta e trancou-a no quarto.Perdera a prova do dia seguinte.
A coordenado pediu que um de seus pais assinasse a autorização para segunda chamada da prova. A mãe não assinara e o pai não morava em casa com elas.
Chegou a pensar em assinar no lugar da mãe, mas o risco era enorme e sequer lembrava o nome da mãe. Não daria certo.
Respirou fundo. O ar não veio. Sentiu-se sufocar.
Algo foi colocado em seu nariz. O pulmão ardeu e se encheu de ar.
A escuridão imperava.Queria pedir para acenderem a luz ou pelo menos uma lanterna.
Estava aterrorizada com o escuro. A ansiedade provocou uma dor lancinante no peito.
Sentiu seu corpo franzino elevar-se acima da tábua em que deitava. Uma. Duas vezes. Ou seriam mais?
De repente não queria mais voltar para casa.
Estava cansada de lavar, passar, cozinhar e apanhar quando algo não estava a contento de sua mãe. Geralmente não estava.
Queria um vestido novo. Uma fita prateada para os cabelos... Prateada não. Lembrar-se-ia daquela faixa na cabeça. Uma fita dourada, talvez. E se fossa dada pelo estranho que se agachara perto dela no asfalto, melhor.
Quanta bobeira – pensou frustrada – obviamente o estranho já estava em casa com sua mãe de contos de fada a preparar-lhe um gostoso almoço com suco de frutas e sobremesa.
Existiria mãe assim? Esperava que sim. Seria muito triste existir mães como a sua.
Pensou na mãe. Agora não lembrava seu nome e nem seu rosto. Que ótimo – ironizou em pensamento – definitivamente estava perdendo a memória.
O veículo parou. Tudo ainda estava escuro, mas ela começava a perceber alguns sons. Vozes. Sobretudo vozes que não se faziam entender. Sentiu-se carregada do veículo para alguma outra coisa. Uma mesa? Sentiu movimentar-se rapidamente. Uma mesa com rodinhas? Uma maca?
As vozes falavam coisas sem parar, mas não atinava com o significado das palavras.Tudo ainda era confuso. Sentiu o braço arder. O sono voltava com mais força. Não resistiu. Caiu em sono profundo e não ouviu mais nada.
***
Acordou de repente. Sentou-se assustada na cama. Gritou de susto com a moça parada a meio metro a sua frente. A moça também se assustara, pois imitara-lhe o gesto de levar a mão à boca devido ao susto.
Ela usava um lindo vestido esvoaçante e azul. Tinha uma fita dourada nos cabelos. Quem seria ela? Abaixou a mão e a moça fez o mesmo. Estaria ela imitando-a deliberadamente?
Inclinou a cabeça de lado e a moça fez o mesmo.Mostrou a língua e mais uma vez foi imitada. Chegou a uma óbvia conclusão. Tratava-se de um espelho.
Seria possível? Hesitante, levantou-se da cama. Caminhou até o espelho. Tocou-o. A superfície lisa e límpida estava fria.
Colocou a mão na boca para esconder o tímido sorriso.Sim.Realmente era um espelho. A bela moça era ela.
Feliz, rodopiou pelo amplo quarto olhando sua imagem refletida.Parou abruptamente. Aquela não podia ser ela. Correu novamente para o espelho.Dessa vez sem medo ou espanto.Olhou para aqueles olhos. Como os seus eram castanhos, mas a semelhança acabava por ai.
Os cabelos que tinha na memória como sendo os seus, eram castanhos e anelados. Chegavam até os ombros. A moça do reflexo tinha longos cabelos lisos e pretos, tão escuros que destacavam nitidamente a fita amarela usada para não deixá-lo cair sobre seus olhos.
A altura era outra grande diferença. Enquanto em sua memória via-se como uma pequena e franzina garota tímida, o espelho mostrava-lhe uma esbelta e alta moça com olhar confiante. Quem era ela? A moça da lembrança ou a moça do espelho?
Não sabia. Estaria ficando louca?
Lentamente a porta do quarto começou a se abrir.
Aquela porta poderia ser as respostas para suas dúvidas. Talvez.
Um feixe de luz iluminou o chão do quarto. Pela primeira vez até então, reparou que estava na penumbra. Sequer cogitara encontrar o interruptor e acender a lâmpada.
Voltou sua atenção para a porta que se abriu totalmente. Não conseguiu ver o que tinha do lado de fora do quarto, pois uma senhora rechonchuda com uma bandeja na mão fechou a porta tão logo entrou no quarto.
—Buon giorno, dormigliona – a mulher estava falando com ela? Em italiano?
—Buon giorno, Cícera.
Colocou a mão na fronte. Ela respondera mesmo ao cumprimento de Cícera em italiano?
Aquilo estava mais que estranho. Como ela sabia do nome da senhora com ar bonachão que acabara de entrar no quarto? Que quarto era aquele?Onde estava afinal? Como chegara até ali?
Cícera estava falando sobre o sucesso da festa de noivado do dia anterior. Todos em Verona estavam encantados com o que toda a imprensa italiana estava chamando de o casamento do século.
Noivado? De quem? Pressentia que teria uma de suas terríveis enxaquecas.
Cícera listava agora todas as virtudes de um tal signore Passarelli com uma determinação que estava começando a irritá-la. Estaria ela falando de Vincenzo Passarelli? O odiável, arrogante e intratável concorrente de seu pai no ramo de vinhos nobres? Só de lembrar do tratante sentia o estômago arder em fúria.
Sentou-se na cama. O que estava acontecendo com ela? Seu pai não era dono de vinhedo e ela não conhecia nenhum Vincenzo. Conhecia?
—Signorina? Cícera tocou-lhe a testa com ar maternal. Deu-lhe um copo com suco de laranja e duas aspirinas.
Pelo jeito as terríveis dores de cabeça ainda existiam naquele mundo paralelo em que ela caíra de paraquedas.
Pediu um calmante a Cícera. Precisava descansar. Tudo o mais teria que esperar. Não sabia ao certo se estava alucinando ou se endoidara de vez. Poderia até mesmo estar em coma no hospital ou tendo um sonho esquisito. Pois, bem. Dormiria naquele sonho maluco e acordaria na sua vida real.
Antes de ceder ao sono pensou se realmente gostaria de acordar para sua vida solitária e medonha.
***
Sentou-se de repente na cama. A primeira coisa que observou era de que estava naquele mesmo quarto com o espelho.
A segunda era que não lembrava qual era seu nome em nenhuma de suas duas vidas.
A terceira era que tinha um homem de costas para a janela balcão enorme entalhada em mogno. Como ela sabia que a janela era feita de mogno só aumentava sua lista de mistérios indecifráveis até o momento.
O homem continuava de costas. Ela esticou o pescoço para ver o que tanto ele contemplava.
Só conseguiu ver um monte bem ao fundo e algum tipo de vegetação próxima à janela.
O homem trajava um terno claro que se moldava perfeitamente a seu corpo atlético. Corte italiano – pensou sarcasticamente.
Aliás, tudo nele exalava Itália. Desde os cabelos escuros espessos até os sapatos sociais de aparência cara.
O homem se virou para ela.
—Vejo que acordou, cara mia.
Impactantes. Foi a primeira palavra que lhe veio à mente ao sentir-se presa sob o peso daquele olhar cor de ébano polido.
Sentiu uma vontade louca de rir histericamente. — Depende do ponto de vista –respondeu mordendo a parte interior da bochecha para não disparar a rir.
Ele arqueou a sobrancelha bem feita. —Vou aceitar isso como um elogio.Tomei a liberdade de trazer-lhe outra bandeja de desjejum.
A ênfase em outra não lhe passou despercebida.
Espantada, notou que a bandeja era na verdade um carrinho com um almoço completo. Caminhou até o carrinho e abriu cada um dos réchauds. Além de frutas e saladas havia também diversos pratos quentes, os quais seriam acompanhados de vinho tinto suave.
Pegou uma garrafa e leu o rótulo. Vinhedo Passarelli e Cesário?
Vincenzo tomou a garrafa de sua mão, abrindo-a habilmente. Pegou uma das taças e despejou o líquido tinto e aromático com delicadeza.
—Experimente – ofereceu a ela– é da nova safra.
Depois de uma breve hesitação, ela aceitou a taça. Seu olhar era contemplativo.
—A ordem do nome realmente não importa, já que você em breve será uma Passarelli.
Que ótimo – pensou com ironia enquanto ele devolvia a garrafa de vinho a seu suporte em cima do carrinho – além de tudo o grande Vincenzo lia pensamento?
—Vou ser é? – perguntou ela ao se dar conta da insinuação contida na afirmação dele.
Um brilho feroz surgiu nos olhos dele. —Pensei que esse assunto já estivesse resolvido.
—Por quem? Você e meu pai?
—Exatamente – ele cruzou os braços. — Esse assunto foi discutido à exaustão pelas partes interessadas.
Ela colocou a taça intocada de volta na mesa-carrinho.
—Nesse caso, por que eu tenho que ser uma Passarelli? Basta que as partes interessadas firmem um acordo de sociedade e voilà : Cesário & Passarelli.
Vincenzo deu um longo e exagerado suspiro.
—Por que você sempre faz isso?
—Isso o quê? – perguntou afastando-se de Vincenzo à medida que ele se aproximava.
—Está vendo? Fez de novo! Vincenzo estreitou os olhos. Ela já estava começando a reconhecer cada gesto dele. Isso definitivamente era péssimo sinal. — Você é irritante, intratável, arrogante...
—Puxa! Não sabia que a gente tinha tanta coisa em comum afinal – ela o interrompeu, arrependendo-se em seguida ao ver a fúria daqueles olhos tempestuosos.
—E malcriada– continuou ele indiferente à interrupção. Nosso casamento dar-lhe-á bons modos. Além de tirar seu pai da moratória.
Agora ele estava a um passo de distância dela. Sentiu a boca seca e os batimentos cardíacos enlouquecidos.Quase não ouvia mais o que ele estava falando.
—Como assim moratória? Estava perplexa. Seu pai estava com dívidas a ponto de fazer um acordo com seu mais odiado concorrente?
—Si, cara mia. Seu pai deve bilhões aos bancos.
—Por que então você simplesmente não vira sócio majoritário de meu pai e me inclua fora dessa?
Vincenzo estreitou novamente os olhos. —Seus modos definitivamente estão péssimos. Jamais deveria ter-lhe dado permissão para desfrutar férias no Brasil.
—Dar-me permissão, é? Com qual direito?Sequer somos casados, caríssimo.
Um sorriso de escárnio surgiu naquele rosto moreno e másculo. Vincenzo foi até a porta.
—Giácomo!
Imediatemente um homem de terno e gravata apareceu. Após receber uma ordem de Vincenzo que ela não conseguiu ouvir, desapareceu de seu campo de visão.
—O homem na porta é para minha proteção ou para garantir que eu não fuja?– perguntou zombeteira assim que ele voltou com uma pasta de couro na mão.
—Digamos que Giácomo tem o dever de proteger meu investimento.
—Os vinhedos? Não seria mais fácil se ele ficasse lá fora?–sorriu inocentemente.
Vincenzo estreitou novamente os olhos. —Tome– estendeu-lhe o conteúdo da pasta. —Refresque sua memória.
Ela aceitou o documento.
Tratava-se de um contrato discorrendo sobre a junção dos vinhedos concorrentes pelo casamento de Isabella di Cesário – ela?– e Vincenzo Passarelli.
Vincenzo observava com interesse as expressões que ela fazia enquanto lia o contrato assinado e reconhecido entre as partes interessadas e do valor exorbitante por quebra de contrato que a parte infratora deveria pagar, se houvesse quebra.
Vincenzo sorriu levemente. Não haveria quebra.
—Uau! – disse ela devolvendo o contrato a Vincenzo. —Você pensou em tudo.Diga-me uma coisa,Vincenzo...
—O que deseja saber, Bella?
Bella? Nada mal para quem sequer nome tinha.
—Qual meu papel nesse contrato?
Vincenzo cruzou os braços e afastou as pernas. Uma típica postura masculina de “pronto para o contra-ataque”.
—O papel de minha esposa. Vincenzo levantou a mão para impedir as possíveis argumentações de Isabella. —Não pense nem por um minuto que esse será um papel fácil.
—Nunca imaginei que concordaria com seu ponto de vista.
—Bella... Ele praticamente rosnou para ela.
—Acredite em mim quando digo que esse seu modo de me provocar vai ser pior para você.
—Quer saber? –Bella perguntou dirigindo-se ao carrinho de comida– estou com fome.
Vincenzo a olhou desconfiado. Não conseguia entender sua futura esposa. Não que alguma vez a houvesse decifrado. Impossibile – pensou– Bella era praticamente uma esfinge. Decífra-me ou te devoro. Embora ser devorado por Bella não seria nada mau.
Esqueça isso, Vincenzo – ralhou consigo– você batalhou muito por esse momento. Não vá por tudo a perder.
Bella experimentava a comida com deleite. A cada porção que levava à boca, fechava os olhos e gemia de prazer. Aquilo o estava levando à loucura. Observou Bella com redobrada atenção. Todos seus poros estavam conscientes dela. Seu rosto oval bem delicado, seus olhos amendoados, sua pele tom de mel.Sempre desejou sentir o sabor daquela pele.Ele e muitos outros. Tirara muitos possíveis candidatos do caminho de Bella antes mesmo que ela percebesse o interesse dos desavisados.
Reparou na camisola azul esvoaçante que ela usava. Nunca imaginou que ela usaria a camisola que ele comprara para ela depois de uma das muitas brigas que tiveram sobre igualdade de direitos e sobre não aceitar presentes de homens arrogantes e patéticos como ele.
A briga gerara uma aposta. Ela aceitou sem pestanejar.Deveria cobrá-la?
Não. Melhor agir como o cavalheiro que era e deixar a aposta para lá.
Aos diabos com o cavalherismo!Era um homem afinal, e Bella era praticamente sua esposa.
Sentindo-se observada, Bella abaixou o garfo com um morango vermelho enorme coberto de chantilly e olhou diretamente para os olhos escuros de Vincenzo.
—O que foi? – perguntou aflita e meio sem jeito pelo escrutínio daquele olhar.
Vincenzo calmamente recostou-se à coluna da cama e a olhou de cima a baixo. —Bonita camisola.
Como um filme exibido em alta velocidade, imagens surgiram na mente de Bella e ela ficou extremamente pálida.
Vincenzo sorriu enquanto servia-se do vinho.
—Vejo que se lembrou da aposta – tomou um gole de vinho, enquanto a observava atentamente – delicioso.
Não sabia como, mas se lembrava nitidamente do encontro de produtores de vinho da região do Vêneto, do encontro com Vincenzo enquanto conversava com um amigo numa mesa de rua na praça delle Erbe e de como esse amigo saiu quase correndo quando Vincenzo o olhou com seu olhar feroz e tomou-lhe o lugar.
Sem saber como, passaram de uma conversa totalmente hostil sobre igualdade de direitos entre homens e mulheres para uma ainda mais hostil conversa sobre como as mulheres se sujeitavam a receber presentinhos de seus supostos amigos pelo tempo em que ficaram juntos num relacionamento.Para Isabella aquilo tinha outro nome.
Foi então que Vincenzo, descarademente, fizera-lhe a proposta.Compraria para ela uma camisola discreta, porém bonita e sensual e se ela a usasse daria o direito a ele de pedir-lhe qualquer coisa.
Isabella não titubeou.
Jamais usaria a camisola e qualquer outra coisa que viesse de Vincenzo.
Com um sorriso malicioso, Vincenzo pegou seu celular e falou uns poucos segundos com alguém. Menos de cinco minutos depois seu segurança particular entregava-lhe um pacote todo elaborado. Dentro do pacote, a camisola.
Quando ela o olhara com uma interrogação no rosto, ele apenas dera de ombros e dissera que havia visto a camisola de relance e concluído que poderia ser um bom presente para uma de suas amantes.
Aquilo deixou Bella furiosa. Aceitara a aposta sem prazo e sem pedir nada, pois já que nunca usaria tal indumentária, não faria sentido exigir algum prêmio.Mesmo porque não toleraria nada que viesse de Vincenzo.
Agora lá estava ela encarando aquele sorriso idiota no rosto dele. Lembrou-se também de que nunca descumpria sua palavra. Agora era enfrentar as consequências de sua tolice. Ergueu o queixo e encarou seu oponente.
—Embora não tenha ideia sobre como essa camisola veio parar em mim, não sou de fugir das consequências de meus atos. O que deseja?
Tudo – pensou Vincenzo – seu corpo, sua mente, seu coração, sua alma. Respirou fundo. Precisava ir com calma ou a fera que sabia existir nele iria emergir.
—No momento somente um abraço e uns poucos beijos.
Bella arqueou as sobrancelhas.—Só isso?
Vincenzo sorriu divertido.—Decepcionada?
O olhar que Isabella lançou-lhe indicou que deveria redobrar os cuidadoso ou sua irascível futura esposa arrancar-lhe-ia os olhos.
— Então? – perguntou cauteloso, servindo-se de mais vinho.
—Vamos acabar logo com isso.
Vincenzo colocou a taça novamente no carrinho e recostou-se novamente à coluna da cama.
Irritada, Bella colocou as mãos na cintura.
—Então?
—Venha até aqui.
Bella o olhou furiosa. —Para quê facilitar quando se pode complicar, não é mesmo?
Vincenzo sorriu. Aquilo estava saindo melhor do que a encomenda.—Nunca disse que seria fácil. Meus termos, lembra-se?
Não, Bella pensou, mas com os diabos com isso!
Saía de uma encrenca a outra com uma velocidade incrível e até agora não sabia se aquilo era sonho ou uma mera alucinação devido ao atropelamento.
Aproximou-se lentamente de Vincenzo. Pensaria em sua confusão mental mais tarde.Agora precisava pagar uma aposta.
Vincenzo observava a aproximação de Bella com ansiedade anormal.Sua respiração estava suspensa e a artéria em seu pescoço pulsava freneticamente, mas não daria a Bella o gostinho de saber de seu tormento. Ela não teria um grama de poder sobre ele.
Bella se aproximou até encostar os dedos descalços em seus pés.Ergueu a mão e tocou seu cabelo. O toque tímido e hesitante quase o desestabilizou. Engoliu em seco a espero do próximo ato.
Bella não o decepcionou.Traçou uma linha de sua cabeça, passando os dedos por seu pescoço e espalmando a mão em sua nuca.Ficou dedilhando ali. O tempo todo olhando-o nos olhos.
Isabella estava confusa. Pensou ver a vitória estampada nos olhos de Vincenzo, mas o que viu foi expectativa e um certo receio. Dela? Como um homem com tanta força e poder teria receio de alguém como ela que nem sabia quem era ou de onde viera?
Talvez tudo não passasse de um sonho e quando acordasse para sua vida triste, solitária e humilhante, sentisse falta desse homem que estava prestes a beijar.Já que iria acordar mesmo, o que tinha a perder?
Isabella puxou a cabeça de Vincenzo em direção à sua e o beijo aconteceu.
Ambos se reconhecendo a princípio, sem pressa.Sentiu a mão de Vincenzo puxá-la pela cintura para mais perto dele enquanto a outra mão subia e descia por suas costas a ponto de fazê-la sentir cócegas.
Conforme a mão dele massageava sua coluna, Isabella aproximava-se mais dele roçando o corpo no dele.Ela não queria,mas não conseguia evitar.Sentia cócegas e uma dor de estômago esquisita que a fazia ansiar por mais.
Vincenzo percebeu intensamente o roçar do corpo feminino no seu e isso o estava enlouquecendo.Passou a massageá-la mais intensamente conforme aprofundava o beijo. O melhor beijo de toda sua vida. Sabia por instinto que beijar Isabella seria glorioso. Deixou os lábios macios para beijá-la no pescoço.
—Dío Santo! Isabella murmurou.
—Eu sei, amore mio. Vincenzo a mordiscou na orelha e Bella, como guiada por outra pessoa, ergueu seu pé descalço e o passou na perna de Vincenzo. Ele gemeu.
Isabella, encorajada por aquele som estimulante buscou-lhe novamente a boca e Vincenzo desceu a mão abaixo de sua coluna lombar, puxando-a ainda mais para si a fim de mostrar-lhe a evidência de seu desejo.
—Vince, per favore... A súplica de Bella era praticamente um suspiro.
—Sí,eu sei, piccola mia. Logo a livrarei desse anseio.
Vincenzo a tomou no colo e a carregou para a cama.Em nenhum momento deixou de beijá-la.
Uma batida insistente na porta evitou que Vincenzo passasse dos limites com Bella no dia de seu casamento.
Deu um rápido beijo em Bella e se dirigiu à porta. Agora faltava pouco. Poderia esperar.
Abriu a porta. O pai de Bella. Ridiculamente Vincenzo sentiu-se constrangido.
—Signore di Cesário. Vincenzo deu passagem para que o futuro sogro entrasse.
—Pode me chamar de babbo, já que daqui a menos de uma hora você será mi figlio.
—Poucas horas? Como assim papà? Bella pulou da cama irritada com o olhar de divertimento do pai.
—Sí figlia. Daqui a exatos 45 minutos você será uma mulher casada.
—Mas,papà! Como vou me arrumar em 45 minutos?
Vincenzo saiu discretamente. Precisava se recompor. Quando visse Bella novamente ,ela estaria caminhando em sua direção no altar montado no grande jardim cercado pelas videiras.
Cesário aproximou-se da filha. —Basta que você use isto. O pai estendeu-lhe uma linda tiara de diamantes.—Sua mãe a usou no dia de nosso casamento e trouxe-nos tanta felicidade que tenho certeza o mesmo ocorrerá com você e Vincenzo.
Isabella olhou a tiara. Lágrimas silenciosas desciam por seu rosto.Sua querida mãe.
O pai tocou-lhe delicadamente o queixo.—Tenho certeza que ela estaria radiante de felicidade por este dia.
—Ela está,papà. Tenho certeza disso.
—Minha bambina. O pai a abraçou fortemente. Afastando-se, enxugou discretamente as lágrimas e abriu a porta para um batalhão de serviçais.
—Estarei do lado de fora esperando para levá-la ao altar.
Bella iria dizer algo ao pai antes de sua saída, mas o batalhão de moças a levaram para uma luxuosa banheira no cômodo anexo. Em instantes foi lavada, penteada, maquiada e vestida .Olhou-se no espelho. Pensou ter visto o rosto de outra moça, tão radiante quanto o dela.
A tiara emprestava um brilho especial a seus olhos. Ou seria reflexo da felicidade que estava sentindo? Não sabia,mas isso não importava.Sua nova vida estava prestes a recomeçar ao lado do homem que amava.
Sorriu ironicamente para o espelho. Amava Vincenzo desde sempre, mas ele não precisava saber disso. Pelo menos não naquele momento. Teriam a vida toda para que ele descobrisse.
Seu sorriso alargou-se. Ela dar-lhe-ia inúmeras pistas.
O pai bateu na porta e entrou.—Pronta?
Isabella virou-se radiante para o pai. Cesário estava orgulhoso e definitivamente muito comovido.—Você está tão linda quanto sua mãe no dia de nosso casamento. Vamos?Ofereceu-lhe o braço.
Bella coloou a mão no braço do pai e juntos saíram do quarto, deixando as moças suspirando.
Ao chegarem ao jardim linda e ricamente enfeitado, a marcha nupcial começou a tocar.Olhando aquele mar de rostos, Bella teve a impressão de estar esquecendo-se de alguma coisa importante. Porém, ao olhar para Vincenzo no altar, todo pensamento que não fosse o homem a sua espera, esvaiu-se como fumaça.
Vioncenzo não cabia em si de felicidade e orgulho.Finalmente todos os seus esforços para ter sua alma gêmea consigo valera à pena. Jamais a deixaria fugir dele.Estariam juntos a partir daquele momento em diante.
Vincenzo recebeu Bella das mãos de seu pai e o cumprimentou.
Ajoelhados diante do padre, Vince e Bella proferiam seus votos de amor,respeito e dedicação.
Bem longe dali, um derradeiro sorriso surgia no rosto de uma meiga moça inconsciente, atropelada no final daquela manhã, tendo como testemunha o moço estranho que a socorreu.
Ainda não encontrara o motorista do carro, nem a mãe da garota. Ambos quando fossem encontrados seriam presos. Ele mesmo se encarregaria disso.
Bella e Vince estavam casados. A madrinha devolveu-lhe o buquê de rosas vermelhas num laço dourado.Bella franziu a testa.
—O que foi, amore mio? Vince levou a mão com a aliança aos lábios para um cálido beijo.
—Nada. Apenas um djavù. Olhou apaixonadamente para o marido. —Devo jogar o buquê? –perguntou sapeca.
Vince olhou para os rostos em expectativas das solteiras presentes.
—Definitivamente deve.
Bella virou-se de costas e jogou o buquê.
Em algum lugar naquele exato momento uma vida se findava.
A vida de Bella estava apenas começando.