O CASTRO DA ILHA

No interior da aeronave, os passageiros puderam sentir a ação do freio aerodinâmico, quando o piloto acionou o comando para baixar os “flaps”. Logo em seguida, um ruído de engrenagens em movimento e um solavanco indicavam que o trem de pouso estava, também, sendo baixado. Alguns passageiros podiam ver as rodas girando, acionadas pelo atrito com o vento.

O jato diminuíra a velocidade e o nariz já apontava para a cabeceira da pista, conforme a orientação da Torre de Controle. Os passageiros com os cintos atados aguardavam o momento do contato com o solo.

Era um vôo procedente de Cuba trazendo para o Brasil, médicos formados pela “Universidad de La Havana”. Eram homens e mulheres naturais da Ilha e alguns brasileiros formados, também em por lá. Alguns experientes e outros recém-formados vinham atender ao projeto “Mais Médicos”, desenhado para suprir desses facultativos as vagas existentes nas cidades interioranas e, também nas demais, em que os profissionais disponíveis não eram suficientes para prestar o atendimento necessário à demanda do Serviço Oficial de Saúde.

Acometida por uma onda de nervosismo e de ansiedade, Dolores Del Carmen Gutierrez era uma das profissionais que atenderam a abertura do programa e vinha prestar serviços conforme a orientação das autoridades brasileiras. Ainda não tinha definição sobre o lugar de destino e não cabia em si de tanta curiosidade.

Era uma morena de 28 anos, nascida na capital, filha de servidores do governo, um verdadeiro monumento! Pai e mãe, gente de confiança do Partido, exerciam atividades de “fiscais de quarteirão” em um bairro de funcionários públicos, cabendo-lhes manter informado o serviço de segurança e os setores de inteligência da área.

Dotada de um corpo escultural, a moça era cortejada por um bom número de rapazes da vizinhança, mas desde cedo se comprometera com a vocação e definira-se entre o namoro e os estudos, elegendo o segundo objetivo.

Embora pertencendo a uma família ligada à burocacia do sistema, residia em um edifício de doze andares que, por ser reminiscência dos tempos áureos de Fulgêncio Batista, ostentava enormes manchas de mofo em suas paredes externas, que se incrustavam com a ajuda do açoite permanente do vento que soprava das bandas da Baía de Guantânamo.

Assim embora já tivesse mantido alguns casos rápidos, nenhum deles se direcionou para casamento, ajuntamento ou formação de família. Carmencita, apesar das aparências, não imaginava permanecer residindo no país e havia firmado o propósito de um dia, conseguir deixar a Ilha, definitivamente. Desejava voar mais alto...

Imbuída desse propósito, sem que ninguém notasse, levava uma espécie de vida dupla. Exteriormente, mostrava-se fiel seguidora das normas ideológicas do sistema e cumpria, religiosamente, os deveres e as obrigações que a rotina induzia a todos os seus compatriotas. Mas, no seu mundo de sonhos, não via a hora de raspar-se dali, com mala e cuia, qual ninfa desvencilhando-se da crisálida.

Estudiosa e interessada nos assuntos escolares, concluiu as fases educacionais preparatórias e logrou obter aprovação para estudar Medicina. Matriculada na Universidade, cumpriu todas as etapas sendo graduada médica em formatura a que compareceram autoridades, familiares e uma boa quantidade de parentes dos demais formandos. Enfim, “consumatum est”! Dizia para si mesmo!

Com oito meses de atuação em setor sanitário do governo, localizado em zona campesina, desenvolvia suas atividades sendo considerada de eficiência reconhecida, tanto pelos pacientes quanto pelos supervisores e fiscais do governo.

De temperamento alegre e expansivo, Carmencita, desde pequenina, mostrava certa atração pelos ritmos caribenhos e não participava de uma festa sem que, a pedido dos circunstantes, tivesse que demonstrar sua destreza e graça dançando rumbas, mambos, merengues, salsas, etc...

Como o local de trabalho ficasse um pouco distante da residência da família, a doutora foi instalada em um quarto de um pardieiro em que viviam várias famílias de funcionários de menor influência. Ali, à noite, na intimidade do seu quarto, Carmencita dedicava-se a um ato que nunca poderia ser descoberto por seus vizinhos ou circunstantes. Era um verdadeiro atentado o seu hábito de escutar, com fones de ouvido, um rádio de pilhas no qual podia sintonizar, também, as estações de ondas-curtas.

Com esse expediente, a moça ouvia várias emissoras de além Cuba e, como não poderia deixar de ser, do Brasil. Daqui ouvia noticiários políticos dando conta da situação do país e, também, notícias do que ocorria nos outros lados do mundo.

Uma da notícias que mais lhe mobilizavam eram as que davam conta dos preparativos para o Carnaval e, principalmente, as atividades das Escolas-de-Samba, dos sambas-enredo, etc... etc... Achava tudo aquilo uma maravilha e o Brasil, em especial, o Rio de Janeiro, era um porto em que ansiaria por desembarcar, para viver o restante de sua vida. Aí, sim, poderia pensar em casar e constituir família. Mas, a interrogação madrasta a atormentar era: “Mas como salir de Cuba”?

Uma noite, ouvindo as notícias, soube de um projeto envolvendo os governos do Brasil e de Cuba, em que se objetivava a importação de médicos cubanos para atender às disposições de um programa identificado como “Mais Médicos”, no Brasil. Era algo que estava sendo conduzido pelos Ministérios da Saúde dos dois países para atendimento das populações localizadas em zonas menos assistidas, ou quase desassistidas, devido a carência de profissionais.

Nesse instante, uma luz acendeu em sua cabeça e, de imediato, definiu que um programa como esse, logo seria difundido pelo seu governo que trataria de estabelecer critérios para que os profissionais fossem sendo cadastrados conforme documentação requerida e dentro dos interesses oficiais.

Dessa maneira, manter-se-ía calada, sem comentar o assunto com quem quer que fosse, ficando atenta ao que fosse difundido pelas autoridades e pelos noticiários do “Granma”.

Conforme o planejado, o dia feliz aconteceu. Carmencita inscreveu-se no programa e, por seu comportamento e observações oficiais, conseguiu obter o respaldo para viajar para o Brasil como participante do Projeto. Assim, iniciamos nosso texto, com ela já a bordo do avião, chegando ao Aeroporto do Galeão.

Era véspera de Carnaval e Carmencita foi instalada em um apartamento de hotel modesto, nas imediações da Ilha do Governador. Passadas as atividades momescas, a doutora seria conduzida ao local definitivo de trabalho, possivelmente, em cidade do Nordeste do país, lá para os fundões do Piauí.

Depois do jantar, Carmencita e alguns colegas da comitiva trataram de ir dar uma esquadrinhada nas imediações e foram convidados por um empregado do hotel que estava entrando de folga, para irem conhecer um último ensaio da “Unidos da Ilha”.

Não foi preciso dizer que, no fervor do samba e induzida pelo troar da bateria, quando deu por si, Carmencita estava soltinha da silva, se esbaldando na quadra da Escola. Não deu pra ninguém. Toda a assistência estava boquiaberta com aquela morena, desconhecida, que estava tirando o brilho das costumeiras passistas.

Foi aí, que um sujeito muito boa pinta, vestindo uma camisa de seda, de mangas compridas, ostentando um “Rolex” de ouro no pulso e um chuveiro de brilhantes na mão direita se aproximou e foi logo desembuchando: Você é nova, por aqui, não?

A moça que já havia se acostumado com o Português, de tanto ouvir seu rádio às escondidas, não teve nenhuma dificuldade em estabelecer o diálogo com o estranho.

-- Si! Soy nueva por aqui! Llegue hoy y me quedo en Rio solo hasta el fin de Carnaval! Me voy para el interior a cuidar de gente enfermada, soy medica!

O sujeito, meio enrolado e surpreso, perguntou:

-- Você não é brasileira? E como dança o samba tão bem assim?

-- Es que de tanto oír la samba y ver em la televisión, me ponia a entreinar y a bailar. Por eso estoy sambando! Eso me gusta mucho! Es muy rico!

-- Escuta, moça! Quero lhe fazer uma proposta! Sou um dos responsáveis por tudo o que acontece nesta Escola, assim, estou lhe convidando para ser a “Rainha de Bateria” e desfilar no Sambódromo! Você aceita?

-- Yo? Reina en Carnaval de Rio? Una cubana? Eso es un sueño?

Carmencita não pestanejou. De imediato lascou um solene “si”, mandando para o espaço toda a proposta que lhe propiciara a viagem, rigidez com o compromisso governamental e os cambaus.

Dois dias depois estava desfilando, na Avenida, com o seu corpo escultural ostentando um minúsculo biquíni. Ninguém entendeu quando o “puxador” começou a atravessar e a desafinar o samba enredo que, por ironia do destino tecia loas de teor revolucionário. No palanque, os jurados se atrapalharam com as notas e um gaiato entrou na avenida dizendo que era Mestre-Sala...

A moça foi a musa do Carnaval, disputadíssima por todas as emissoras de televisão, com sua imagem explodindo nas telas do mundo inteiro.

Uns caras da Rede Globo estavam dando a ideia de contratar a nova Rainha da Bateria, da Unidos da Ilha, para assumir o lugar da “Globeleza” que já estava ficando decadente.

Enquanto isso, a turma da “Sexy” já armava o bote para levar a moça para um “ensaio sensual”... No meio dessa euforia explodindo, desde o Rio de Janeiro, lá em Cuba havia gente questionando se não seria de bom alvitre desfazer o tal acordo do "Mais Médicos"? Temiam que “muito mais médicos” acabassem se engraçando com as coisas do Brasil e dessem um chega pra lá nos descaminhos do caribe.

O sujeito da proposta engatou um caso com a doutora, montou um confortável apartamento em Ipanema e, com ela, juntou os trapos. Era um bem sucedido banqueiro do jogo do bicho, estabelecido com várias bancas espalhadas pelos bairros da cidade. Curiosamente, seu sobrenome era “Castro”. O apelido, “O Castro da Ilha”... Carmencita ficou viciada em feijoada, mocotó, bife com batata-frita e, ainda, o famoso "Angu do Gomes"...

Anunnak – 18/11/2013 – 00:38Hs

Amelius
Enviado por Amelius em 18/11/2013
Reeditado em 19/11/2013
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