A história de Renata
Solange era uma moça radiante; mais que linda, tinha algo que a fazia brilhar, especialmente quando sorria, ou quando fixava o olhar intensamente azul atentamente em qualquer objeto. Mas não era apenas com seus olhos e sua beleza que encantava a quem estivesse à sua volta, também seus gestos, seus modos, sua atitude frente a quase todas as coisas a tornavam uma moça apaixonante.
Sua amiga Luara era talvez tão bela, embora não possuísse o mesmo brilho. Tinha o rosto equilibrado, as proporções corretas, as formas, todo o corpo muito próximo da perfeição, mas, em contraste com a amiga, lhe faltava a aura luminosa indescritível que a destacava onde quer que estivesse. Inseparável da outra desde o início da adolescência, vivia sob o contínuo encanto da amiga.
Como era natural, os dotes de Solange não passavam despercebidos aos rapazes, e foi Márcio que arrebatou seu coração. Era um jovem médico muito bem sucedido, tendo herdado do pai uma clínica de tratamento para a infertilidade. Desde estudante praticava todas as técnicas de reprodução assistida, tornando-se exímio nas variadas práticas executadas na clínica. Com a morte repentina do pai, em um desastre de automóvel, logo após sua formatura, tornou-se o dono do estabelecimento, mantendo o mesmo altíssimo padrão de qualidade de serviços que seu pai impunha, apesar de sua tenra idade.
O jovem médico, rico e galante, não resistiu aos encantos da moça: apaixonou-se perdida, loucamente por ela. De fato, parecia impossível a qualquer mortal manter-se ao redor de Solange sem sucumbir ao apelo envolvente de sua magia, e, como pareceu natural, Márcio se viu arrastado por uma torrente avassaladora que o compelia a pensar na moça constantemente, a não tirá-la da cabeça nem por um instante.
Mesmo fortemente envolvida pelo jovem eminente, a moça impôs um namoro relativamente longo, adiando o casamento proposto desde o início do relacionamento. Já havia decorrido mais de um ano quando ocorreram as núpcias.
Após o casamento, Luara pode retomar a antiga intimidade com a amiga, relativamente abalada pelo namoro, quando Solange obrigou um certo afastamento à amiga, de fato, ligeiro, mas amargamente sentido pela outra.
Mesmo depois de casados, a paixão de Márcio pela esposa crescia dia após dia, tornando-se quase uma obsessão, um amor desenfreado, transbordante, total. A atração insana não era nunca saciada pela presença da amada, ao contrário, era alimentada por ela. O encanto da jovem tornava o marido cada vez mais obcecado pela moça, até que em um dia fatídico, absurdo, ela morreu, na flor da idade, em desastre de automóvel similar ao do sogro.
Um abalo imenso esmagou a vida de Márcio que, já havia alguns anos girava quase exclusivamente em torno da muher, como se ela fosse sua luz, seu ar. Parecia ser ela quem iluminava o mundo ao redor; controlava sua respiração, suas pupilas, seus pensamentos. Mas, repentinamente, desapareceu, deixando um enorme vazio.
Abatido, Márcio perdeu, de imediato, todo o seu ânimo; nada mais lhe interessava; um desgosto imenso inundou todo o seu mundo. Desencantado, perambulava como um zumbi desalmado, os olhos sempre fixos no nada, o corpo arqueado, dobrado sobre o peso enorme a constranger seus ombros.
O tempo passava sem que o homem conseguisse se reerguer, sem que a luz retornasse ao seu mundo, sem que o sabor amargo da perda desvanecesse.
Luara também sentira intensamente a ausência da amiga, mas havia se refeito muito antes que o jovem apaixonado esboçasse qualquer sinal de recuperação do abalo. Assim, foi ela quem tomou para si o encargo de trazê-lo de volta para a vida.
Havia algo bastante reconfortante naquela relação. Para ambos, a presença do outro fazia renascer uma familiaridade antiga, uma espécie de retorno ao tempo de Solange, ao seu convívio. De uma certa maneira, aquela proximidade evocava a volta à situação desejada permitindo que ambos revivessem e compartilhassem antigos momentos de felicidade.
Difícil explicar como os dois acabaram se envolvendo em um namoro morno, mas, ao mesmo tempo estável. Foram se tornando inseparáveis, enquanto o rapaz finalmente recuperava seu equilíbrio, fazendo sua vida retornar à normalidade após longo período de desencanto.
Acabaram se casando. Começavam uma nova vida, juntos, em fogo brando. Não havia mais, no rosto do homem, o sorriso radiante e constante, reflexo das emanações outrora produzidas por Solange. Mantinha o rosto sombrio; buscava apenas sobreviver, amparando-se na amiga.
A moça, no entanto, ganhou brilho inaudito. Embora inebriada pela amiga falecida, tinha vivido sempre eclipsada por ela. Luara era bela, inteligente, e possuidora de inúmeras virtudes anteriormente ofuscadas pelo fulgor mais intenso da amiga. Agora podia irradiar sua própria luz. Ao lado de Márcio, verdadeiro príncipe encantado, rico, belo e desejado, ganhava uma forte energia que a permitia mostrar sua iridescência como nunca antes.
Era Márcio quem fazia os exames ginecológicos na mulher, que engravidou poucos meses após o casamento. A gravidez a tornou ainda mais radiante. Sempre desejara ser mãe, e, assim que recebeu a notícia, dada pelo próprio marido, adquiriu ares de gestante. Surpreendentemente, o futuro pai, que durante o casamento anterior nunca tinha revelado o desejo de ter filhos, mostrou-se bastante entusiasmado com o fato, parecendo começar a despertar do desânimo letárgico no qual mergulhara desde o falecimento da primeira esposa.
A gestação transcorreu perfeitamente, sem problemas, embalada por uma alegria maternal, pela consciência agradável de estar gerando um filho. Aliás, uma filha, como soube e quis desde o início, em consonância com o desejo do pai que nunca duvidara desse detalhe, confirmado aos 3 meses, durante exame de rotina.
A alegria de ambos crescia na mesma proporção em que a barriga da jovem senhora.
O nascimento da menina, Renata, foi uma enorme bênção para a casa. O entusiasmo transbordante do pai, antes taciturno, amplificava ainda mais a felicidade extrema da mãe, orgulhosíssima de seu primeiro bebê.
Surpreendiam na menina os lindos olhos azuis, radiantes, que a cada dia ganhavam mais intensidade. Em contraste com os olhos escuros da mãe, e com o tom castanho claro do pai, os olhos intensamente azuis do bebê chamavam atenção de imediato, assim que a criaturinha risonha os abria. Causava espanto sua semelhança com os da falecida esposa do pai.
Os olhos eram o seu maior encanto, não apenas pela cor, mas pelo brilho intenso que irradiava vida. Vivendo em uma atmosfera feliz, alimentada pelo entusiasmo de pai e de mãe, as feições da menina refletiam o ambiente feliz. O bebê estava sempre alegre e risonho, sempre ávido para brincar, para se jogar no mundo, especialmente quando via o pai, presença constante em seu quarto, sempre pronto para atiçar a curiosidade da pequena criatura.
Assim, a menina foi crescendo, sempre saudável, tornando-se mais linda a cada dia. Era um bebê confiante, alegre, ávido por conhecer tudo ao redor. Sua alegria transbordante, manifestada, especialmente, à chegada do pai, era contagiante; todos adoravam estar em sua presença; fazia enorme sucesso ao passear pels ruas, no carrinho de bebê, lançando sorrisos encantadores para os transeuntes.
Tudo na casa era encanto e felicidade, exceto uma pequena sombra que crescia tão pertinazmente quanto a menina: apaixonada pelo marido, Luara começava a se sentir abandonada por ele, trocada pela menina. A princípio o sentimento a havia agradado, tinha gostado de descobrir mais uma virtude em Márcio: seu amor pela filha. Mas a candura inicial com que o pai recebera a criança crescia a cada dia, parecendo tornar-se obstinação, induzindo na mãe uns ciúmes crescentes, uma carência, um sentimento de abandono, de estar sendo trocada pela menina. Gostava de ver o marido zeloso sempre atento à filha, querendo usufruir cada momento com ela, mas se ressentia do excesso, e, principalmente, de ser posta em segundo plano por ambos. A preferência dos dois, um pelo outro, pai e filha, era muito evidente, e quase não permitiam que a mãe compartilhasse o idílio constante em que os dois viviam. Quando posta na cama de casal, a pequena se dirigia invariavelmente para os braços do pai, que se mantinha então hipnotizado, com o olhar cravado nos olhos radiantes da menina que eclipsavam o mundo inteiro ao redor, deixando a mulher sombreada em um plano muito secundário.
O encanto de Márcio pela filha era intenso a ponto de impedi-lo perceber o desagrado crescente da mulher.
Á medida que a menina crescia, enquanto ia tomando forma, uma nova sombra, silenciosa, encravou-se ainda mais profundamente no coração da mãe. Talvez decorrência de uma conversa durante a festa de aniversário da menina, quando alguns velhos amigos presentes evocaram um fato óbvio, mas nunca antes tratado: a semelhança estrondosa da menina com Solange, a falecida esposa de Márcio.
De fato, os olhos radiantemente azuis clamavam de imediato tal semelhança, mas também o formato do rosto, o sorriso, e, à medida em que ia crescendo, seus gestos, sua voz, e até sua postura nos grupos. Assim como Solange, Renata parecia dominar os colegas com seu encanto, tornando-se, quase sempre, naturalmente, o centro das atenções. A quantidade, assim como o grau de semelhanças entre uma e outra era estarrecedora, quase amedrontadora, ao suscitar comentários míticos, suposições esotéricas de uma possível reencarnação, do retorno da venerada falecida, muito quista por todos os que a haviam conhecido.
A conversa descambou para especulações sobrenaturais, enquanto Luara se embrenhava em estranhas elucubrações, deixando-se invadir por um sentimento amaríssimo que ensombecia seu semblante.
Ao final da festa de aniversário um olhar austero havia se abatido sobre a mãe, assim como uma postura mais solene e amarga. Talvez a menina o tenha percebido, ainda que inocentemente; encantado pela filha, no entanto, e sem olhos para mas nada, Márcio não notou a alteração profunda que se evidenciava no comportamento da mulher.
Ao se afastar do marido, percebeu o quanto as relações entre ambos estavam vazias, o quanto o marido estava distante dela. Mesmo assim, dias depois o sondou: queria ter mais um filho. A sugestão foi sumariamente descartada por Márcio. Já tinham uma filha, deixou claro que estava bom daquele jeito, e que nada deveria mudar.
Apesar do distanciamento entre ambos, Luara conseguiu engravidar, o que só foi percebido pelo olhar profissional de Márcio, o proprietário da clínica de tratamento de infertilidade, depois dos seis meses de gestação, casa de ferreiro...
O homem ficou duplamente descontente com o fato, não queria outro filho, isso o desagradava. Mas o ferimento em sua vaidade profissional acabou superando esse desagrado, ao menos nas explicitações verbais Culpava-se por não ter percebido o fato antes, quando poderia ter dado um jeito. Era sua forma de lidar com um problema além de sua alçada. Para ele, contudo, a nova situação correspondia apenas a um dissabor, a um pequeno tropeço cujas consequências deveriam ser minimizadas.
A mulher, por seu turno, ia recuperando parte da felicidade que parecia haver secado anteriormente. Voltou a adquirir alguma doçura, tornando a exibir parte do viço anterior. O nascimento do bebê quase não teve efeito no marido. Foi obrigado a alterar a rotina nos primeiros dias, enquanto a mãe se recuperava do parto. A mulher, no entanto, recebeu a criança de maneira apaixonada; zelosa, e ciumenta. Passou a ter olhos apenas para o bebê.
Márcio sentia até certo conforto no afastamento da mulher. Entretida com o bebê, ela o deixava mais livre, sem exigências, e isso o agradava. Percebeu, no entanto, uma mudança irritante no comportamento da mãe. Logo após o nascimento a mulher se fechou com o bebê, como se construindo um mundo próprio, só dos dois, o que pareceu natural a Márcio, como uma recepção ao mundo. Passados os meses, no entanto, o comportamento se perpetuava, adquirindo um fechamento cada vez mais intenso. A mãe se agarrava cada vez mais ao bebê, se isolava com ele do resto da casa, abandonando, aos olhos do pai a filha mais velha.
Pior que mero abandono, a cada dia a mãe se tornava mais impaciente com a filha mais velha, mais áspera; sempre grudada ao bebê, qualquer ação da menina era passível de recriminação. Seus barulhos acordavam o bebê, suas corridas o agitavam, seus pedidos incessantes atrapalhavam a rotina, todas as ações da menina eram erros passíveis de admoestação.
As sucessivas tentativas de aproximação com a mãe acabaram resultando no oposto. Incapaz de conseguir uma boa recepção por parte dela, de conseguir da mãe algum afago, recebendo apenas reprimendas amargas, ameaças e gritos, acabou desistindo dessa aproximação, buscando no pai uma compensação ainda maior por essa carência.
Muito atento ao que se passava, Márcio tentava intervir; sucessivamente, mostrava à mãe a intolerância com que tratava a menina. Tinha adquirido feições raivosas, indicativas de um mau humor constante; tornou-se barulhenta, e irritadiça, com a filha, o que desagradava o pai que, por sua vez, deixava isso claro, tentando chamar a mulher à razão seguidamente.
As repreensões sucessivas do cônjuge também desagradavam a mulher irascível. Foi ficando cada vez mais irritada com as admoestações, rebatendo as críticas com gritos desafiadores que acabavam gerando gritos mais intensos. A casa foi se tornando barulhenta, as discussões se sucediam, sempre em torno do mesmo ponto.
Antes do primeiro aniversário do bebê, Luara decidiu se separar do marido. A decisão acarretou apenas uma apreensão no homem: ele deveria ficar com a menina; era sua única exigência, negada peremptoriamente pela mãe, uma catástrofe.
A ameaça deixava o pai à beira do desespero. Ele reconhecia que a menina precisava do carinho de mãe, mas alegava que não era isso que ela vinha dando para a menina, e justificava o seu desejo exclusivo pela filha, com base nessa alegação.
Mas a decisão foi tomada, separaram-se e a mulher levou ambos os filhos, para desespero do pai, que foi à justiça pleitear a guarda da mais velha; tinha lá suas razões para pedir só ela. A decisão do juiz, contrária ao pedido do pai, se baseou mais na união dos irmãos que em qualquer outra justificativa. Ficou estabelecido que o pai pegaria as crianças nos fins de semana.
A mãe passou a se queixar do tratamento dado pelo pai ao bebê, enquanto o homem reclamava do desleixo da mulher para com a filha. De fato, a menina ia ganhando rapidamente uns ares selvagens, rebeldes, tendo perdido a alegria e parte do brilho anterior.
Quando possível, o pai preferia não levar o bebê, que acabava atrapalhando os passeios com a filha, exigindo cuidados especiais. Com o passar do tempo, esse costume foi sendo mantido, aproveitando, também, a mãe para ficar exclusivamente com o menino.
O passar dos anos não amenizou a relação entre os ex-cônjuges, espicaçada repetidamente pela mesma reclamação de desleixo para com a filha. Quando buscava a menina Márcio presenciava os seguidos atritos entre ambas, as reprimendas iradas, o desconsolo impotente da menina, sua rebeldia crescente.
Saíam sempre apressadamente, enxotados pela mulher aos berros, a menina desgrenhada, com aspecto sujo e desmazelado, trajando roupas escolhidas sem esmero, ao acaso. O desleixo ia crescendo na mesma proporção em que a menina, em oposição à apresentação impecável do menino, sempre muito bem trajado, e obviamente bem cuidado. O contraste evidente entre ambos era atribuído pela mãe ao descuramento da filha, exclusivamente culpada de todos os erros.
A menina tinha problemas na escola, não se socializava. Irascível, não tinha amigos, mantendo-se afastada de todos. Rebelde, não tinha nenhum interesse nas aulas, às quais era forçada a assistir, pura e simplesmente.
A impressão gritante de desleixo causada pela menina era superado apenas por uma outra, muito mais surpreendente: sua semelhança impressionante com a primeira mulher do médico. Era como uma versão meio rústica da primeira; descuidada, maltratada, mas portadora dos mesmos traços fisionômicos.
A tragédia ocorreu em uma excursão, quando a mãe impôs o menino ao pai, viajando exclusivamente com a filha. Durantes a subida de uma montanha com um grupo, a mãe não conseguia conter a rebeldia intolerável da filha nem com sucessivos beliscões aplicados na menina. Chegarem ao topo do monte em meio a uma interminável discussão, razão suficiente para que se tivessem afastado do grupo. Conta a mãe que ao se aproximar da beira de um imenso precipício, a menina escorregou, caindo lá de cima; morte trágica.