Quem sou eu ?

Romeu Prisco

--- Pois não, conte-me a sua história. --- disse o advogado ao seu mais novo cliente.

Sem vacilar, o cliente passou a resumir sua vida ao causídico.

--- Nasci numa grande fábrica de uma pequena cidade do interior do Estado de São Paulo. Depois da morte do seu proprietário, um influente ex-Senador da República, a indústria fechou as portas. Eu era um dos melhores. Fui produzido com componentes de ótima qualidade, em máquinas de última geração, importadas da Alemanha e acionadas por operários especializados.

--- Mal chegava às lojas de departamentos, ficava pouco tempo nas prateleiras e logo era adquirido por alguém de bom gosto. Assim, inicialmente, fui parar na casa de uma rica família de Belo Horizonte. Como eu era de extrema utilidade, lá fiquei durante muitos anos, servindo aos meus proprietários, com amor, carinho e dedicação. Depois, já em idade avançada, ligeiramente gasto, porém ainda com muito vigor, fui doado à faxineira da família. Minha nova dona pouco me usou. Ela, por sua vez, entregou-me ao seu filho, um caminhoneiro, que percorria as estradas do nosso país, transportando peças de uma conhecida montadora de automóveis.

--- Adiante, na boléia do caminhão, passava dias e noites ao lado do meu mais recente portador. Preferia chamá-lo assim, porque ele mais parecia um amigo, do que outra coisa. Juntos, viajamos por este imenso Brasil, de norte a sul, de leste a oeste. Conheci lugares bonitos, outros nem tanto e alguns de muita pobreza, que me deixavam triste, até porque neles eu poderia ser útil, amenizando parte do sofrimento das pessoas carentes. Mas, o destino ainda assim não queria.

--- Permaneci com o "Flexa Dourada" - este o nome pintado no pára-choque do caminhão do meu amigo - por mais um longo período. Quantas vezes tomei chuva e, molhado, nem sempre secava ao sol, embora este não fosse o desejo do "Flexa". Coitado, premido pelo trabalho e pela urgência nas entregas que deveria fazer, nem sempre ele se dava conta do meu estado.

--- Um belo dia, com o "Flexa", fui parar em Brasília. Ainda não conhecia a nossa capital federal. Puxa, arrojada, moderna, mas já conturbada e cercada de favelas. Interessei-me pela sua história, fiquei sabendo que o ex-Presidente Juscelino, dando cumprimento à previsão constitucional, resolveu mudar a capital brasileira para o planalto goiano. Destarte, com a colaboração dos arquitetos Oscar Niemayer e Ícaro de Castro Melo, ergueu uma nova cidade.

--- Ainda em Brasília, certa noite, o "Flexa" parou num restaurante para jantar. Na saída, viu-se diante de um homem de baixa estatura, cabelos compridos, pele fortemente bronzeada, olhos amendoados e aspecto de mendigo. Este nada pediu e sequer dirigiu a palavra ao "Flexa". Nem precisava. A sua atitude não era hostil. O meu amigo, condoído, perguntou-lhe se ele necessitava de algo. A resposta, num peculiar português, foi afirmativa. Alguns trocados para um lanche e algo para se agasalhar, já que iria passar a noite ao relento. Era o quanto lhe bastava.

--- O meu amigo não vacilou. Deu-lhe os trocados e a mim, como pedira o mendigo. A dor da separação foi grande. Todavia, maior foi a alegria de, enfim, poder servir a alguém tão humilde e necessitado. Meu amigo despediu-se e eu fui carinhosamente abraçado pelo novo companheiro, que, depois de um rápido lanche, me conduziu até um abrigo de ônibus. Lá se deitou no banco, colocou-me sobre o seu corpo e foi assim, doutor, que mantive o meu primeiro e único contato com o índio Galdino.

Atento à narração do novo cliente, o advogado ponderou:

--- Senhor Cobertor, gostei da sua história, muito interessante e humana, comovente mesmo, mas, ainda não detectei qual a razão da sua consulta. Embora conheça o caso da morte do índio Galdino, o senhor pode fazer o favor de explicar ?

--- Claro, doutor. --- respondeu-lhe o Cobertor. --- Antes, porém, deixe-me dizer-lhe que estou no maior sofrimento. Jamais esperava que, um dia, isso fosse acontecer justamente comigo, que nasci para aquecer quem de mim precisava e nunca para fazer mal, por menor que fosse. Quem me dera, doutor, ter ficado totalmente puído e imprestável há mais tempo ! Quem me dera ter sido totalmente devorado pelas traças ! Hoje, doutor, eu não estaria sendo responsabilizado como parte integrante do cruel assassinato do índio Galdino. Como posso me defender, de tão grave acusação ? Como posso, na melhor das hipóteses, diminuir a minha pena, pela participação, ainda que, involuntária, naquele lamentável evento ? O senhor aceita defender-me ?

--- Certamente. --- disse-lhe o advogado. --- Enquanto o senhor relatava o motivo da sua visita, eu desenvolvi uma linha de defesa inédita em direito penal, mas com boas chances de ser aceita em juízo. De acordo com a minha estratégia, o senhor não seria inteiramente absolvido. Todavia, a pena legal seria dividida por três, cabendo a cada participante do delito, apesar de coautores, somente, claro é, uma terça parte. Pode até ser que o júri entenda de dosar a parte da pena a ser aplicada, conforme o grau de importância da participação de cada um, no trágico fim do índio Galdino. O senhor quer conhecê-la ?

Aflito, voz trêmula, tirada do fundo d'alma, retrucou o Cobertor:

--- Sim doutor, diga logo algo que sirva de alívio para o meu desespero.

--- Calma, senhor Cobertor. Deixe-me também trazê-lo para outra realidade. A parte da pena que o senhor e os demais participantes receberão, será pedagógica. Isto significa que todos jamais poderão cometer o mesmo erro de servir de tentação a jovens inocentes, educados, de boas famílias, que queriam apenas brincar e que, agora, estão às voltas com a justiça, exclusivamente por culpa sua e dos seus colaboradores. Assim, senhor Cobertor, vou conclamar ao júri que divida a sua pena com o Álcool e o Fósforo.

FIM

--------------------------------------------------------------------------------

Respeite os direitos autorais.

Visite:

www.lunaeamigos.com.br/prisco/prisco.htm

www.www.recantodasletras.com.br/autores/romeuprisco