Um Conto recifense

1

Ela dormia nua em minha cama, deitada de bruços, com os cabelos esparramados em suas costas. Seu braço direito caía fora da cama, ainda segurando um cigarro apagado.

Eu observava aquela cena, sentado no chão, e ao mesmo tempo tentava me concentrar na revisão de algumas páginas que havia escrito no começo da noite. Acompanhava o ritmo pesado de sua respiração enquanto riscava e substituía palavras repetidas ou ajustava uma frase em meu texto. Tentava manter minha atenção naquela tarefa aborrecida e apelava para o uísque em busca de alguma inspiração. Havia meses que eu tentava escrever um Romance. Meu editor ligava duas ou três vezes por semana para me perguntar quando entregaria mais um capítulo. Pouco havia progredido, mas restava-me ainda algum prazo. Aquilo para mim era uma guerra. Cada página era uma batalha e a cada dia sentia-me mais distante de um fim satisfatório.

Meu quarto era uma bagunça. Do tipo que só um cara tão desleixado quanto eu poderia conceber. Havia mais coisas espalhadas pelo chão do que em seus devidos lugares. Apesar de tudo, aquele tipo de ambiente nunca me incomodou. Perdido em meus pensamentos, larguei o rascunho sobre uma escrivaninha e abri a janela com cuidado para não acordar a mulher que ressonava ao lado. Eu havia parado de fumar e o cheiro que a jovem espalhara pelo quarto me deixava angustiado, entre outras coisas que a presença dela me causava. Chegara de surpresa. Sem aviso de qualquer tipo. Bateu a porta, entrou e se fez em casa, como era de costume.

Tomei mais um gole da bebida e deixei o copo repousando na janela.

Me sentia como se estivesse em uma panela de pressão. Apesar de ser tarde da noite, as paredes eram quentes ao toque e o ar pesado e úmido. Eu sentia que ia me afogar naquele quarto. Com o corpo ardendo, entrei no banheiro e sentei-me embaixo do chuveiro ligado. Deixei a água me lavar o suor e esperei que ela levasse também os pensamentos que me atormentavam.

“Porque deixei que ela entrasse?”

Balbuciei aquelas palavras enquanto a água escorria entre meus lábios... Fechei a torneira e adormeci ali. Sentado e abraçado aos meus joelhos, sem resposta alguma.

2

Acordei e já era dia.

Com a pele dos dedos enrugada e o pescoço doendo por ter dormido de mau jeito, me estiquei tentando levar algum sangue aos meus membros doloridos.

Então levantei-me e tomei um banho gelado.

Meu estômago rugia de fome apesar de eu me sentir nauseado pela péssima noite de sono. Enxuguei-me e joguei a toalha no cesto de roupa suja. Andei até o quarto e não havia ninguém. Não encontrei nenhum vestígio da mulher pelo apartamento, nem do copo de uísque na janela, nem das cinzas de cigarro que ela havia deixado espalhadas pelo chão. Esvanecera-se.

Sabei-o, amigos. Tenho a impressão que fica cada vez mais difícil para mim, diferenciar ilusões da realidade. Há momentos em que minhas memórias se embaraçam e meus sonhos se misturam com suas contrapartes mais concretas do mundo material. Esfreguei os olhos e me sentei na cama, ainda nu, com o cabelo encharcado e um terrível gosto de guarda chuva na boca. O relógio marcava 11 da manhã e o silêncio vindo das ruas me dizia que era sábado. Por algum tempo questionei a autenticidade de minhas lembranças da visita que eu recebera na noite anterior.

Encostei minha cabeça num travesseiro buscando uma posição em que meu pescoço doesse menos e chequei a caixa de entrada do meu celular.

Não havia nada. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação também.

O computador estava ao lado da cama, desligado. O texto que eu decidira revisar estava sobre a escrivaninha, com alguns riscos e comentários que eu não lembrava de ter feito... O que não era algo incomum naquela época.

Pensei em ficar na cama o dia todo e esperar pela segunda feira.

Meu estômago, no entanto, questionava essa disposição. O que me fez levantar e ir até a geladeira, onde encontrei pouca coisa que me valesse uma refeição. Fui então até uma janela onde respirei o ar vindo do porto... O cheiro de maresia que tanto me fez falta.

Procurei no armário uma roupa que estivesse menos amassada que as outras, me vesti e desci as escadas do antigo sobrado que eu conseguira alugar no bairro de São José. Nunca me interessei por morar em um dos feudos de concreto que se espalhavam por Recife naquele tempo. Lá se erguia um novo prédio em cada esquina. Todos cercados por grandes muros e cercas elétricas. Elevadores e duas vagas de carro por apartamento. Tudo o que a grande classe média recifense desejava. E eu só queria o velho. O que ficara esquecido naquele bairro portuário que fora tão mal habitado no século passado. Não me importava com o piso de madeira que rangia quando eu andava, ou com as marquises cheias de lodo e vergões enferrujados. Gostava de andar pelo bairro, sentar nas calçadas e olhar os prédios se decompondo. Gostava de sentar na beira do porto e ver o lixo da cidade escorrer para o mar. Tudo aquilo me fazia sentir-me em casa. Distante das pessoas ditas normais. Distante do fluxo normal do tempo e da cidade. Eu era feliz, imerso naquele clima de decrepitude, de Solidão, de fim de mundo. Poucas coisas me definiam tão bem quanto o silêncio do Recife Velho em dias de semana. Ninguém ia ali. Ninguém percebia, ninguém via as pessoas e fantasmas que viviam e perambulavam por ali. Era um pedaço morto da cidade. O pedaço da cidade que eu mais amava. Aquilo era o que eu chamava de casa.

Logo, ganhei a rua de paralelepípedos lisos e segui as ruas e pontes entre pessoas e carros. Cruzei o asfalto e o rio, a lama e o mangue. E quando o sol chegava a seu ápice no céu, arrancando de mim, toda minha ressaca em forma de suor, eu alcancei o Pátio de São Pedro. Sentei-me num bar, a beira de uma igreja corroída pelo tempo. Pedi uma cerveja e um almoço comercial ao garçom que já me conhecia. Tomei um gole e recostei na cadeira de plástico.

“Apenas me deixe pegar sua mão e escrever meu endereço e telefone nela.”

Me veio a lembrança...

“Me deixe apenas, te pegar pela cintura e te levantar até a altura dos meus olhos. Me deixe apenas te fazer promessas e planos, para o inferno com o meu passado e com o seu. Eu não me importo...”

Me vieram na memória as palavras de uma carta que eu escrevera e nunca enviara. Uma carta que nunca quis que fosse carta. Palavras que eu quis dizer e terminei engolindo... Só para vomitá-las depois em um papel.

O que aquela mulher fizera em minha vida...? Tão poucas eram as coisas que faziam sentido a seu respeito. Tão imprevisível era o seu comportamento que nunca sabia o que lhe dizer. Ou o que poderia esperar de sua pessoa.

Aquela mulher só me trouxe dúvidas, e uma sensação quase permanente de incompletude. Eu tinha a impressão de que havia algo de errado na forma que as coisas aconteciam entre nós. Havia algo estranho nas suas idas e vindas. Algo que eu não podia compreender sobre ela...

Fiquei ali, imerso naquele devaneio e entre outros pensamentos até a terceira cerveja. Paguei a conta, e satisfeito, fiz o caminho de volta sem pressa.

Abri a porta de casa e me joguei na cama, esperando um sono sem sobressaltos. Tudo continuava fora de lugar no meu mundo claustrofóbico de poucos metros quadrados.

Dancei comigo mesmo uma valsa sob meus lençóis.

Embriaguei-me de solidão e adormeci.

3

“Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem

que é pra te dar coragem, pra seguir viagem,

quando a noite vem”...

Ela cantarolava enquanto passava os dedos em meu peito.

Embriagado de seu perfume, eu dormitava em seu colo numa doce ‘maresia’ pós-amor. Sentia o deslizar de suas unhas pela minha pele, causando-me arrepio atrás de arrepio, seguindo o ritmo de nossas respirações ofegantes.

Ela parou para acender mais um cigarro. Seu vício sempre à mão.

Eu desistira de contar quantos ela fumava a cada encontro nosso.

Eu desistira de muitas coisas quando se tratava daquela mulher.

Não esperava que ela fizesse sentido. Deixava que ela entrasse e saísse de minha vida a seu bel prazer. Entreguei-lhe até a chave de minha casa.

Enfim, a moça recostou minha cabeça num travesseiro e serpenteou silenciosamente até a radiola.

Acabara o disco que ela tanto gostava.

Bebericou um pouco do vinho que trouxera e substituiu o vinil.

Apanhou o vestido que largara no chão e sentou-se na janela com as pernas displicentemente entreabertas. Sorriu quando percebeu que eu a observava.

Não disse nada, só saboreou a mistura do vinho e cigarro em sua boca e a brisa que lhe tocava as costas nuas.

Fui até ela. Segurei com força em sua cintura e enterrei meu rosto entre seus seios.

Beijei-lhe a pele quente e ela entranhou os dedos em meus cabelos.

Tomei-a nos braços e deitamo-nos no chão. Beijei-lhe até perder a noção da passagem do tempo, e tendo apenas os mosquitos por testemunha, me lancei de novo no abismo que era o amor daquela mulher.

Sem diálogo, sem palavras, sem certezas ou expectativas... Sem pára-quedas.

Era o chão que me esperava, com certeza...

Mas quem se importa?...

4

Eram dez da manhã quando meu editor ligou...

Não atendi.

A faxineira tocou a campanhinha cinco minutos depois. Abri a porta e lhe deixei entrar. Era uma senhora perto dos seus 60 anos que sempre tivera muita paciência comigo e com minha desorganização. Deixei a casa em seus cuidados e saí à rua. Segui a pé até um supermercado. Comprei as coisas que consegui lembrar que me faziam falta, entre elas uma garrafa de uísque, já que havia esgotado a última escrevendo as trinta páginas mais recentes do meu Romance. Percebi entre as prateleiras um colega do tempo da faculdade de biologia. Como não tinha o mínimo interesse de iniciar um diálogo naquele momento, desviei-me da sua vista e me dirigi o mais rápido que pude ao caixa. Não havia fila e comecei a passar minhas compras.

Ainda dei uma olhada indiscreta nos seios da morena que me atendia e lhe entreguei meu cartão do banco. A jovem me sorriu e antes que me perguntasse eu lhe disse.

-Passe no Débito.

Recolhi minhas coisas e tomei o caminho de volta para casa.

Joguei tudo na geladeira de forma desorganizada e botei as pernas para cima numa cadeira de praia na varanda.

Minhas vizinhas de baixo tinham costume de fumar maconha antes do almoço e eu não me incomodava com o cheiro. Já tinha até me acostumado a sentar ali e ouvi-las dando risadas e conversando sobre suas vidas sexuais com os respectivos parceiros. Morava naquele sobrado há quase seis meses e ainda não sabia os seus nomes.

Fiquei naquela posição pelo resto da manhã. A faxineira me acordou do meu cochilo para me dizer que ia embora e que duas moças pediam para falar comigo. Paguei-lhe a diária e fui até a porta para ver quem eram as visitas.

Senti o cheiro de erva quando me aproximei da entrada. Eram as duas jovens que moravam embaixo.

Se apresentaram como Clara e Gabriela.

Perguntaram-me se eu tinha gelo.

Fui até a geladeira de má vontade e verifiquei que o congelador estava repleto de ‘neve’ e havia apenas uma vasilha com gelo.

Abri uma lata de cerveja e levei o vasilhame até as duas.

A que parecia mais jovem, Gabriela, tomou o pote de gelo nas mãos e Clara me agradeceu com um beijo no rosto.

Fiquei sem reação enquanto observava as duas descerem as escadas aos risos. Voltei para a varanda e liguei para o meu editor.

Disse-lhe que entregaria mais três capítulos até o fim da noite, o que era uma solene mentira. Pelo menos até o momento.

Sentei-me e terminei de beber a cerveja enquanto pensava no traseiro da garota que havia me beijado.

5

Alguém batia insistentemente em minha porta.

Eram nove da noite de uma terça feira de outubro, eu me recordo.

A pessoa batia e chamava por meu nome. Se eu não estivesse tão embriagado quanto estava, talvez tivesse reconhecido a voz de Tiago, o editor do periódico que havia me contratado sete meses antes para lhe entregar um Romance. Tinha acordado com ele a entrega de um capítulo por semana, para que ele pudesse publicar como faziam os jornais de antigamente. Eu só tinha aceitado a proposta pela minha falta de dinheiro. Sabia desde o princípio que seria uma tarefa difícil. Era raro que minhas inspirações durassem mais do que uma página e eu tinha uma péssima relação com prazos de entrega. Sabia disso pelos meus 10 anos de academia. Por toda graduação, mestrado e doutorado, eu raramente eu cumpri meus prazos, e quando o fazia, era depois de muito tempo de procrastinação.

Por não ter reconhecido a voz, cambaleei até entrada e abri a porta. O editor pareceu aliviado ao me ver vivo, mesmo no estado de embriaguez que eu me encontrava. Deixei que ele entrasse, apesar da garota nua dormindo deitada no sofá. Sentei-me em uma cadeira e indiquei-lhe outra.

Ele se manteve em pé.

- Você sumiu! Onde estão os capítulos que me prometeu? Pensei-te morto, afogado no próprio vômito! Disse-me furioso.

Tive vontade de mandá-lo ao inferno. No entanto, ofereci-lhe uma cerveja.

Percebi que Tiago estava à beira de chutar-me, ou pior... De me demitir.

Por fim, sentou-se e disse.

- Você tem uma semana! Uma semana.

Deixei-o falando sozinho e fui ao quarto. Regressei com um maço de papéis e joguei-lhe na cara.

- Aí deve ter mais do que você precisa para me deixar em paz por mais um mês, não? Deixe o cheque antes de sair, por favor.

Fui ao banheiro e lavei meus olhos avermelhados, talvez pelas duas noites de insônia, ou pelo bolo que Clara havia me feito comer sem saber o ingrediente especial que ela adicionava em sua receita.

Tiago deixou a casa com meus rascunhos e largou um cheque em cima da mesa.

Eu teria um mês de tranqüilidade, sem ninguém me ligando insistentemente ou batendo a minha porta para saber se eu estava vivo.

Quem ele pensa que eu sou? Bukowski? Murmurei irritado.

Fechei a porta atrás de mim e sentei-me no braço do sofá onde garota dormia. Passei a mão em seu cabelo, que apesar de ser naturalmente liso, ela mantinha sempre entranhados em longos dreads.

Clara tinha vinte e um anos, ou pelo menos era a idade que ela dizia que tinha. Era uma artista plástica amadora, apesar de ser muito boa. Morava no sobrado abaixo do meu com sua prima Gabriela. Certa vez veio à minha porta e perguntou se podia me desenhar. Eu ri do pedido, a princípio. Mas pude perceber a seriedade em seu rosto e lhe perguntei o motivo do interesse em me retratar. Ela disse-me que eu tinha algo que ela procurava ha muito tempo e só isso, o que achei satisfatório. Resolvi deixá-la fazer o retrato e foi assim que entre duas ou três visitas e algumas garrafas de vinho e conhaque ela terminou em minha cama.

Clara tinha namorado, mas eu não me importava. Contanto que ele não batesse em minha porta com um revolver, eu estava suficientemente satisfeito para manter aquela situação. O cara era um idiota. A própria Clara reconhecia, mas gostava de mantê-lo por perto. Ele sempre tinha erva consigo e a levava a lugares que ela apreciava. Ele era muito jovem, ela dizia. E para certas coisas ela preferia contar com homens da minha idade.

Eu gostava da garota. Ela falava menos do que era comum para mulheres de vinte e poucos anos. E com certeza falava menos besteira. Eu deixava que ela lesse meus manuscritos e apreciava seus comentários. De vez em quando me trazia comida e não reclamava de minha bagunça. Às vezes vinha ao meu quarto apenas para me observar escrevendo e desenhar.

Nesta noite, Clara veio com uma disposição para sexo que poucas vezes eu tinha visto. E só apenas depois de quatro intercursos que se deixou cair no sofá e adormeceu. Eu sabia que provavelmente devia ter brigado com o namorado. As constantes brigas com o rapaz lhe atiçavam o libido e desde que tornei-me seu amante, era a mim que ela recorria nessas horas.

Eu estava exausto e de certa forma, frustrado. A visita da garota havia me interrompido enquanto escrevia. Não conseguia retomar o pé da coisa e abandonei o computador de lado. A visita do editor também não havia ajudado. Andei de um lado para o outro do quarto. Tomei um cigarro da bolsa de Clara e pensei em acendê-lo. Meus seis meses de abstinência teriam ido para o espaço naquele momento se eu tivesse algum fósforo em casa. Por sorte, havia esquecido de comprá-los.

Larguei o cigarro no chão e fui dormir.

6

O sangue escorria vermelho vivo, da ferida para a lâmina da navalha. Naquela tarde de domingo, fazia minha barba, meio atarantado, meio perdido. Olhava no espelho, não reconhecia o homem do outro lado. O toque do telefone me distraiu e assim, errei o corte. Segurei um pouco a ansiedade e não atendi. Estanquei o ferimento com um algodão e terminei o serviço sem pressa. Voltei ao meu quarto e joguei-me em minha cama. Minutos depois, o telefone tocava de novo. Apesar do revirar do meu estômago, da sensação de urgência e de toda a agonia que me acometeu, deixei o aparelho tocar indefinidamente.

Sabia quem era e não queria ouvir sua voz. Aquela mulher, que agora me ligava com certa insistência, era também capaz de desaparecer e passar meses sem me dar a mínima atenção. Imprevisível, egoísta e adoravelmente cínica. Eu sabia que atendendo a ligação, correria o risco de ceder ao seu encanto. Ela tinha a capacidade de soar sincera até quando proferia a mais solene das mentiras. Era para mim um mistério. Naquele momento eu estava cansado de mistérios. Queria um pouco de paz para seguir adiante com minha vida. Eu sabia que ao ouvi-la, minha resolução de não vê-la se desmancharia e eu terminaria em seus braços. Tanto me custara deixar de pensar nela depois do último sumiço. Não estava disposto a voltar àquele círculo vicioso. Não queria voltar àquela rotina doentia.

Levantei-me irritado. Peguei as chaves de casa e desci as escadas.

Encontrei Clara e seu namorado na frente do sobrado. Ela me sorriu e se aproximou para me dar um abraço.

- Tudo bem, poeta da ressaca? Falou-me ao pé do ouvido, depois de me dar um beijo no pescoço.

Seu namorado parecia tão chapado que nem sequer percebeu o gesto indiscreto de Clara.

- Tão bem quanto eu poderia estar. Estou saindo para uma caminhada.

Disse-lhe tentando me afastar e seguir meu caminho.

Clara, no entanto, me reteve segurando em meu braço.

- Porque não vem conosco? É aniversario de Gabi. Vamos comemorar na casa de praia do namorado dela. Ela pediu que lhe convidasse.

A princípio não achei uma boa idéia viajar com minha amante e seu namorado. Mas... ‘Foda-se’, pensei. Não tinha nada melhor para fazer.

Subi as escadas, peguei uma garrafa de vodka, um casaco e fui ao encontro dos dois no carro em que me esperavam. Passei a maior parte da viagem calado, apesar das freqüentes tentativas de Clara para me fazer falar.

Ao fim ela conformou-se. Quando chegamos à casa de praia onde seria dada a festa, o idiota deixou-a no carro comigo e foi se meteu no meio do povo visivelmente ansioso. Assim que ele saiu da vista, puxei a garota para o banco de trás e a beijei ali mesmo. Certos riscos eu gostava de correr.

Não ficamos no carro por muito tempo e logo entramos na casa. Cumprimentei Gabriela e outras pessoas presentes na festa. Clara não saía do meu lado. Estava com um vestido verde longo, estilo hippie, com uma estampa de temática indiana que me agradava bastante.

Depois de algumas horas, todos os presentes estavam entorpecidos. De álcool e de juventude. Eu sentava no chão, agarrado com o que sobrava de minha vodka. Clara estava deitada aos meus pés, conversando alegremente com duas holandesas estudantes de intercâmbio, já bem integradas ao estilo de vida do nordeste do Brasil. Levantei-me para ir ao banheiro carregando a garrafa comigo. Esbarrei um rapaz que parecia não saber onde estar e quase me deixei cair na porta do banheiro. Dei de cara com o namorado de Clara. Empurrou-me e chamou-me de idiota. Não esperava aquilo dele. Parecia sempre tão chapado que eu o achava incapaz de alguma violência. Fingi que não fora comigo. Segurou meu braço e disse que sabia de Clara. Pedi que me soltasse. Largou-me o braço e me cuspiu no rosto. Acertei-lhe a cara com a garrafa. O vidro não espatifara-se, mas abri-lhe um corte na têmpora. O rapaz então, soltou um gemido e caiu com um baque surdo. Entrei no banheiro, urinei, lavei o rosto e voltei a sentar onde estava. Socorreram-no logo depois. Parecia estar bem, apesar da força do golpe. Logo, estava aos flertes com uma das intercambistas, que lhe estancava o sangue da ferida.

Escapando da atenção de Clara e dos outros presentes me sentei à beira do mar com os pés ao alcance da água e uma garrafa de vodka enterrada ao meu lado. Havia chegado ao fim da garrafa e me sentia nauseado. Bebi um pouco mais. Senti-me arrependido por não ter atendido o telefone.

O que será que ela queria comigo? Me perguntei, enterrando a cabeça ainda mais na areia.

7

Voltei para casa sozinho, sem dar satisfações. Peguei o primeiro ônibus e rumei de volta ao Recife. Clara me ligou três vezes durante a viagem. Não lhe atendi. Na quarta vez, desliguei o celular. Desci próximo de casa. Caminhei até o porto e me deixei ficar lá sentado até que escurecesse completamente. Tomei o caminho de volta. Subi as escadas e sentei-me na varanda. Cochilei e acordei depois da meia noite. Não pude voltar a dormir por mais que tentasse.

Abri uma segunda garrafa de vodka e voltei a beber.

Sentei-me a escrivaninha e deixei alguns pensamentos fluírem para o papel.

Tomo mais um gole, em memória dela.

Vodka e gelo, para uma segunda feira insone.

Ela dorme, agora, com certeza em qualquer lugar que seja.

Não faço idéia com o que sonha.

Se é que sonha, afinal.

Desligo o rádio, para tentar dormir.

Resta apenas o barulho do ventilador,

e de um ou outro mosquito ao redor dos meus ouvidos.

Me pergunto por que estou pensando nela.

Não sei o motivo desse pensamento recorrente,

que chega a incomodar.

Aquele olhar que eu sequer me lembrava que tinha me olhado,

hoje me assombra... De uma forma quase agradável.

Não é a primeira vez, nem vai ser a ultima,

que eu me encanto por poucos detalhes e ignoro todo o resto.

Talvez Ela não seja para mim.

Talvez eu não precise de algo assim agora...

Mas eu não seria eu, se desse ouvidos à razão.

1:40 da manhã e eu permaneço acordado.

E nada nesta noite faz sentido.

A não ser o relógio, que continua me dizendo que eu devia estar dormindo.

Entre nós dois nada nunca fez sentido...

Por fim, amassei o papel e joguei pela janela.

8

Já era novembro, meio de semana e eu estava de ressaca. Fazia um calor infernal e eu queria poder morar dentro da geladeira. Deitei-me no sofá com um ventilador ligado no máximo em minha cara.

Eu não escrevia há mais de quinze dias. Não conseguia articular nenhuma frase sequer. Discutira com Clara e ela não me visitava mais depois do ocorrido. A princípio, não senti falta. Pensei em mudar-me, depois. Mas em um segundo pensamento, desisti. Teria trabalho demais.

Sentia-me desanimado para sair de casa. Ao mesmo tempo que já me cansava daquele ambiente. Me sentia preso. Preso em um livro ruim. Em uma narrativa que não levaria a lugar nenhum. Parecia que Deus era um péssimo escritor e eu era um mero coadjuvante. Eu esperava que uma hora ele se desfizesse de mim ou que engendrasse algum capítulo mais animador de minha existência.

Naquele momento de minha vida eu não tinha grandes ambições.

Queria apenas inspiração suficiente para terminar o maldito texto que eu tinha me comprometido a entregar. Queria sentar-me uma noite e escrever por dois ou três dias seguidos, até a exaustão. Comecei a adquirir hábitos estranhos. Trocava a noite pelo dia. Alimentava-me mal. Bebia praticamente todos os dias. Lia Augusto dos Anjos avidamente. Adquiri um pouco de sua morbidez. Pensava-me como ele, caminhando pelas sombras da Ponte Buarque de Macedo. E vieram Baudelaire, Poe e Cruz e Souza. Vez ou outra escrevia sonetos. Desagradavam-me a maioria. Passei uma semana sem dormir mais do que duas horas por dia. Pensei em suicídio, certa vez. Pensei-me um idiota, logo em seguida.

Por tanto tempo eu havia esperado por uma ligação, ou pelo barulho de passos escada a cima, tão característicos. Sentia falta daquele perfume invulgar. Do cheiro de cigarro que invadia a casa tão logo ela se instalava. Do seu jeito tão diferente de qualquer outra mulher que eu já tinha tido. Sua imprevisibilidade me entesava. Mas toda aquela incerteza tirava-me o sono. Comecei a delirar.

Me vi entrando em uma academia de boxe. Passava as tardes surrando um saco de areia. Corria dez quilômetros por dia. Aquilo já estava me fazendo sentir uma pessoa saudável. Pude novamente dormir. Apagava e não tinha sonhos. Bebia com menos freqüência. Me peguei num flerte com uma moça. Pensei que me tornaria uma pessoa normal enfim.

Me vi arrumando um emprego, casando, formando uma família, tendo filhos e morrendo aos 76 anos de Câncer.

Pude até ver meu nome numa lápide com a inscrição.

-Amoroso pai e esposo.

1986 - 2062

Acordei desesperado.

Andei até o banheiro e vomitei no vaso sanitário.

Lavei o rosto, escovei os dentes e fui então ao computador.

Escrevi 50 páginas. Voltei para a cama e dormi por um dia inteiro.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 14/10/2013
Reeditado em 16/10/2013
Código do texto: T4525099
Classificação de conteúdo: seguro
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