POR UM OLHAR
Meu coração bate desordenadamente. Viro para o guarda e sorrio, na esperança de que não esteja escutando o bumbo que toca em meu peito. Nem me olha, acostumado com a rotina do dia a dia. Apenas estende a caneta e aponta o livro aberto para que assine e registre o número da Ordem e o horário da entrada. Escrevo o solicitado, procurando manter a cabeça baixa. Arrisco mais uma observada. Decididamente, não me vê, nem faz diferença quem esteja entrando por ali.
Dou-lhe as costas, caminhando em passos que pretendo serem firmes, embora minha perna, de vez em quando, dê uma cutucada na outra.
As grades do grande portão estão abertas. Raro. Mas hoje é dia de festa. Sempre dão uma aliviada na vigilância. Sei que isto é aparente. Disfarço um olhar para o alto do velho prédio. Em cada ponta há um vigilante de arma engatilhada. Tenho uma vontade doida de retroceder, de voltar ao normal, de raciocinar, mas passa logo. Foi apenas um lampejo. Mesmo por que, não tenho outra saída. Já que estou aqui, não posso fraquejar.
Entro. Há trânsito de pessoas de um lado para o outro, entre risos e abraços, sob os olhares disfarçados dos guardas. Isto é loucura, tenta me assoprar no ouvido a voz da consciência. Nada. Digo que se cale, que não está me ajudando. Sigo em frente, atravesso corredores, olho para dentro de celas, umas vazias outras com feras enjauladas. Ainda é tempo, Marinalva, grita meu coração. Lembro-me de meus filhos. Na parede, o grande e velho relógio. A esta hora, estão brincando na pracinha da creche.
Vozes, gritos, abraços, soluços, burburinho. Fico mais desorientada. Um tremor me faz piscar com insistência. Disfarço, num sorriso torto. Pode alguém estar me observando.
Enfim, a cela 4090. Valdomiro abre. Com pressa, enfio-me no cubículo mal cheiroso. Nem tenho tempo de examinar. Nem precisa. São todos iguais.
Segura-me as duas mãos e me puxa para um canto.
– E então, doutora? Sem grilo?
Retiro as mãos apressadamente. Ele se dá conta.
– Desculpa. É que estou num parafuso.
– Está tudo correndo normal. Até aqui, nenhum problema.
– Avisei o guardinha que não estava me sentindo bem, que não queria participar de confraternização porra nenhuma. Desculpa, mais uma vez. Sabe como é...
Puxa uma cortina esfarrapada. Ficamos atrás. Vou tirando a roupa, ele também, ambos de costas. Por último, a peruca, de vasta cabeleira. Visto o “uniforme” que me jogou pelos ombros, ainda quente do corpo suado. Que nojo! Nos viramos.
Se não fosse o nervosismo, teria dado boas gargalhadas. Ainda bem que não era alto, tendo quase a minha estatura. De saia comprida até os pés, peruca castanha, óculos, parecia uma palhaça, não eu. Mas teria de passar pela portaria. Tínhamos como trunfo a distração dos seguranças, naquela data festiva. Tirei da bolsa um espelho e batom. Pintou os lábios, desajeitadamente. Fizemos tudo em silêncio.
– Pronto. Agora não tem volta. Faça como combinamos. Lembre-se, se cantar, se abrir o bico, vai se dar mal.
Saiu.
Senti uma vontade imensa de chorar, pedir socorro, dizer que fui iludida, forçada, chantageada. Mas calei. Coloquei o boné, enfiei-me embaixo dos lençóis, deixando apenas nariz e olhos de fora. Embora o dia estivesse frio, suava.
Fiquei revivendo os fatos anteriores.
A jovem bonita e elegantemente vestida entrando no escritório e me propondo aquilo. Disse não, que ela era louca, que não me prestaria a tal coisa. Sorriu, ficou em silêncio por alguns instantes. Olhou para os objetos sobre a mesa, estendeu o braço, pegando o porta-retratos. Passou os dedos de unhas escarlates sobre os rostos das crianças, falando como se não fosse comigo. Rodrigo é mais bonito pessoalmente. Rafaela está igual. É um encanto. Gosta de correr e de brincar no balanço. O mano não gosta, mas às vezes é obrigado a empurrá-la, pois não resiste às suas ordens.
Levantou o rosto, encarou-me, com um sorriso cínico. Que pena! Dois anjinhos, lindos e inocentes.
E havia profunda maldade no olhar.