MEU PECADO
Quando me casei, não queria filhos. Tinha isto bem decidido. Sendo o do meio dentre os sete do casal, via o trabalho que dávamos. Na hora das refeições, um sacrifício para mamãe. Sempre alguém reclamava de alguma coisa. Era o arroz muito mole, o feijão salgado, o pedaço de carne que ( mamãe dividia milimetricamente) o outro ganhara maior, o mano olhando debochado, a mana batendo na nossa canela por debaixo da mesa, enfim, tudo motivo para brigarmos na hora que mamãe dizia ser sagrada. Mamãe envelhecia precocemente com as nossas brigas, que a faziam sofrer muito. Mas não tínhamos consciência disto.
Por estes motivos, decidira: não teria filho. Mas, quando casei, começaram a chegar. Sempre que minha mulher me anunciava uma gravidez, ficava sem falar com ela por um bom período. Era a culpada. Claro que sim. Por que não evitava? A tarefa lhe cabia, pois estava ciente do que eu pensava sobre filhos.
Desde que a conheci, alertei: não quero filhos. Concordara. Mas as crianças estavam chegando. Quando via um pedacinho de gente, indefeso, chorando, eu o amava. Amava-o muito, muito mesmo. Eram especiais para mim. Mas seriam somente aqueles. Não admitiria a vinda de outro.
No entanto, mais outro chagava. Quando me dei conta, estava com a casa cheia. É isto mesmo. Com a casa cheia. Pois em duas oportunidades vieram em duplas.
Amei-os. Dediquei-lhes minha vida. Como pai amoroso, cercava-os de cuidados e me esforçava para que não lhes faltasse nada. Foram crescendo, crescendo... Começaram a casar, vieram os netos, a família aumentado e com ela as preocupações.
Aline era a minha menina especial. Claro que amava todos. Mas Aline... uma boneca. Linda! Os cabelos negros brilhando, o sorriso de criança mimada, tinha um jeito especial de me agradar. Sabia me dar carinho como nenhum dos irmãos.
Casou-se. Estava mais bela. A minha filhinha casada. Nem sabia como podia ser o pai de uma princesa, assim, tão doce, no vestido de noiva.
Já tinha outros netos, mas o filho de Aline...
Então, o acidente. Aline morta. Não podia acreditar. Era demais para mim.
Quando ouvi o estrondo, corri para a estrada. Quase enlouqueci. Pensei que nunca mais iria me recuperar. Minha filha estava aos pedaços.
Peguei o barco e saí para a lagoa. Não me interessava mais nada. Tudo o que queria era esquecer a cena brutal. A minha Aline... os pedaços...
Fiquei três dias no barco. Queria morrer. Mas me lembrei dos outros filhos, do netinho sem mãe. Voltei.
Aos poucos, fui retornando à normalidade. Filhos casando, netos chegando.
O neto mais velho saiu com os amigos para ir a um baile. Na curva, o caminhão em alta velocidade o colheu. Morreu no local. Desta vez, não fugi. Acompanhei meu neto até a última morada. Não chorei. Meus olhos secos. Somente meu coração chorava.
O segundo filho saiu para pescar. Veio a tempestade. O barco virou. O corpo foi encontrado. No meu sofrimento, nem as feridas haviam cicatrizado e outra se abria.
Meu garoto mais moço era ativo. Gostava de me ajudar. Quando saíamos para a lagoa, era o meu melhor parceiro. Trabalhava com gosto, satisfeito. Fazia molecagens que eram motivo de darmos boas risadas. Nele tinha amigo e companheiro. Um dia, resolvemos consertar o barco. Em uma das marteladas que dei, o prego saltou e furou-lhe o olho. Não teve jeito. Por mais que se procurasse socorro médico, não houve solução. Havia vazado. Foi o início do fim. O olho infeccionou, atingindo o outro. Veio a cegueira, infecção hospitalar, e outras complicações. Os médicos não entendiam, mas meu filho estava morrendo.
Agora, estou sentado no porto. Enterrei meu rapaz há menos de uma hora. Quero chorar, mas as lágrimas teimam em não vir. Fixo a água da lagoa. Parece que é a reunião das lágrimas que, de alguma forma, saltaram de mim.
Lembro-me que não queria filhos.
O vento está forte. A onda bate do barco. O ruído parece me dizer: culpado... culpado... culpado...