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O ANDARILHO DA ESPERANÇA
“Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que Sonha a tua filosofia.” W. Shakespeare – Hamelet – Ato I, Cena V.
Quando vejo a alta e desgastada soleira da porta na antiga casa* da rua das Laranjeiras, breve arrepio de admiração faz nascer, em mim, a crença nas maravilhas prodigiosas a que a alma humana é capaz de realizar. E pergunto:
O que permeia o estado grosseiro da matéria de uns , incapacitando-os de ver e sentir as ocorrências invisíveis, impalpáveis da transcendência? Ao contrário, insisto ainda, que liberdade misteriosa é essa de elevarem outros, tocando-lhes as limitações materiais, e assim descerrando-lhes os olhos para o oculto?
Pois foi sobre essa rústica e velha soleira que Nêga se encontrava distraída a observar o movimento de transeuntes na praça** adiante de si, quando fora surpreendida por aquele homem de aparência despojada. Ele chegou silencioso rente a parede. Pediu-lhe humildemente um copo com água.
Viviam o ano de 1965. Campinas era um bairro pacato, acolhedor.
Irresoluta pela surpresa, avivou, porém, na moradora, o sentimento da piedade. Convidou-o a entrar. Percebeu o meigo coração da moça que além do copo d’água podia também abrandar a fadiga do pedinte; este não se fez rogado. Desfez-se do saco às costas colocando-o no chão, vindo a seguir acomodar-se na cadeira acostada no canto da sala, sugerida que fora pela moradora.
A quem o pudesse melhor examiná-lo --- não fosse a nossa boa costureira que, surpreendida pela repentina visita, não tinha olhos para detalhar as condições precárias do seu visitante inesperado --- veria, pelas roupas surradas, as sandálias carcomidas, além do modesto saco de aniagem deposto no chão, tratar-se de um pobre andarilho; no mais, a barba grisalha juntamente as rugas da face denunciava-lhe claramente o desgaste dos anos; a expressão cansada, a não se demonstrar desiludida, podia-se, ao menos, entendê-la desencantada com o mundo dos homens que o cercava.
Bebeu a água e permaneceu calado. A moça, de pé, recebeu o copo e, ao voltar-se para a cozinha, o homem delicadamente a convidou que se assentasse. Nega voltou-se surpresa porém obedeceu.
--- A sra. crê na Mãe Santíssima?
--- Sim!... Eu sou católica! Respondeu-lhe vivamente.
---A sra. é capaz de receber uma revelação sem guardar rancor?
--- ???... Como?... Não entendi!
--- Consta comigo que há tempos a sra. padeceu de fortes dores de cabeça afligindo-a em menor grau até hoje... pressinto não ser com a mesma intensidade de antigamente, mas ainda assim a aflige, não é verdade? A moça concordou num gesto de cabeça. Em agradecimento ao seu coração pela caridosa acolhida que recebi, posso lhe revelar a origem desse mal. Propôs o andarilho.
Com certa relutância Nêga acedeu, embora no íntimo ela confirmasse a exatidão das palavras esclarecidas do visitante.
--- Pois bem, se confiar em Nossa Senhora e em mim, faça o que lhe peço.
Então a solicitou que trouxesse uma bacia pequena meada de água bem cristalina, acompanhada de toalha branca.
Atendido, convidou-a a sentar-se a sua frente.
Nesse ínterim o homem puxara do saco deposto aos pés, um quadro visivelmente desgastado, em cuja estampa a Virgem amparava nos braços o menino Jesus, oferecendo-o à moça.
--- Tome!... Segure-o no colo!
Em seguida, de posse da pequena bacia o andarilho puxou por uma cadeira posicionando-se frente a dona da casa. Colocou a bacia por sobre as pernas ajuntadas, estendendo respeitosamente a toalha por sobre ela; olhava fixamente por sobre a toalha ali estendida. Disse-o finalmente: Vejo a sra e outra mulher numa sala, não nesta aqui... as duas conversam... a outra mulher é mais velha... tem os cabelos compridos, bem compridos; é magra, alta, bem alta... ela agora sai da sala... mexe num fogão à lenha... ela reaparece na sala e oferece a sra uma xícara... a sra. bebe o conteúdo (o homem concentra-se fervoroso mirando a toalha e prossegue) ...uma fumaça negra penetra em sua cabeça (por um instante tira os olhos da toalha e volta a fitar a consultada) ...a sra tem pressa de sair... despede-se da outra.
Os olhos do homem desviaram-se definitivos da toalha buscando os da anfitriã. Neles, atônito, Nêga refletia de sua memória a veracidade daquela estranha narrativa, outro senão era fato ocorrido em sua cidade, onde morara antes. A descrição da mulher coincidia límpida com Dorvalina, vizinha naquela cidade, onde também costurava. “Por quê? Qual a razão de Dorvalina para me prejudicar? Ela não dizia ser minha amiga?” Perguntas surgiam embora não encontrassem razões plausíveis para respondê-las.
Para sua maior surpresa o visitante, como se penetrasse em seus pensamentos, prontamente lhe disse:
--- Essa mulher dizia ser sua amiga, mas, na verdade não era... Ela nutria sim, profunda inveja pela maneira da sra costurar... Assim, urdiu um plano maldoso impossibilitando a sra. de trabalhar... Imaginava os clientes abandonando a costura que a sra. fazia, na esperança de procurá-la posteriormente; invejava a sua moda e não vendo progredir o trabalho que ela desenvolvia, apelou para um bruxo fazer o serviço e prejudicar a sra. ... No mais posso dizer que esse bruxo entregou a ela o pedaço de um couro de cobra recomendando que o fervesse junto ao preparo do café e a oferecesse para bebê-lo. ... Foi o cafezinho tomado naquela ocasião que continha o feitiço.
O coração da moça batia descompassado ante aquela verdade deveras chocante e reveladora.
Com o quadro fortemente preso às mãos, Nêga levantou-se afastando para o lado. Por um momento sentia-se só, desconhecendo a presença daquele homem à sua frente; na angustiada mente agitada desfilavam os inúmeros e aflitivos sofrimentos que a prejudicaram amargamente por anos em todos os aspectos da vida; reviviam, num misto de raiva e decepção, todas aquelas cenas em casa de Dorvalina, com o conseqüente suplício que viveria posteriormente nos meses e anos iniciais, vítima daquela trama diabólica.
A decepção, a revolta e o ódio momentâneo, revivido na face, demonstrava a dificuldade da moça lutar com tais sentimentos, ao que o visitante instou-a, então, a abdicar do rancor da vingança e abraçar o perdão, este, conquista de poucas almas a elevar a dignidade humana.
Após compreendê-la melhor ajustada no caminho do bem, acenou a ela que se aproximasse; de posse do quadro preso às mãos instruiu-a que o colocasse por sobre a mesa, e a água da bacia fosse despejada na pia, deixando posteriormente nova água correr-lhe por cima. Assim foi feito.
Ambos agora de pé, frente a frente, depositou a mão sobre a cabeça da moça, e, de olhos fechados orou em silêncio. Nêga permanecia também de olhos fechados; seus sentimentos por ora eram de confiança e de esperança pelas verdades ditas a ela. Atenta, pois, pelo especial momento, não conteve o suspiro que brotou de seu peito, à medida que leve calor exalava do alto da sua cabeça. Foi o que sentiu.
--- ... Por tua formosa face, Mãe Santíssima, que assim seja! Disse-o finalmente em voz alta finalizando a oração.
--- Pronto! --- Emendou --- ... Agora a sra está livre do malefício... reze por aquela mulher e por intenção do homem que a aconselhou... a sra está definitivamente liberta daquela perversidade.
Dito, de posse do quadro à mão abaixou-se. Pegava o saco de viagem aos pés.
--- O Sr pensa ir agora?
--- Sim!... ainda tenho muito chão para andar hoje.
--- Eu faço um café... o Sr toma?
--- Desde que não tenha couro de cobra, eu aceito! Abriu um sorriso de pilhéria.
A moça correspondeu-lhe, seguindo rumo a cozinha.
Consta que as inconstantes dores de cabeça que acometiam a costureira findaram depois daquele dia inesperado. Consta, também, que ela nunca mais viu aquele homem misterioso. Anos sucederam anos; Nêga, em determinados dias da semana ficava por horas na soleira da porta observando o movimento na praça, local onde outrora foi um dos mais antigos cemitérios da Campininha das Flores, embora, na realidade, tivesse consigo o firme propósito de reencontrar seu benfeitor. Mas...
* Certa parte das antigas casas da rua das Laranjeiras, em Campinas, bicentenário bairro de Goiânia, não tem alpendres, suas paredes frontais divisam imediatamente com a estreita calçada e, logo, à rua, expondo as portas de entrada.
** Outrora, um dos primeiros cemitérios do antigo bairro.