Sarau da Madrugada

Quando os sonhos acordam.

Não é exatamente uma biblioteca. Apenas uma pequena saleta com uma estante de madeira escura que cobre toda uma parede, a mesa, a cadeira giratória, uma poltrona - grande o suficiente para poder cochilar e uma luminária para as leituras noturnas. Ah, e uma janela que não dá para o nada, mas incide luz natural tanto do dia como a luz da noite. Parece uma sala normal, sem nada que a diferencie das outras tantas que existem nas residências...

Às vezes, quando chega o silêncio e a casa dorme, nessa saleta, os personagens saem dos muitos livros entulhados na grande estante, das folhas sob a mesa, das gavetas e começam o que eles próprios chamam de sarau da madrugada. Ninguém sabe ao certo quando começaram esses encontros.

O flautista de Hamelin, Edmond Dantè e Sexta-feira já se conheciam, juntamente com o Dumbo e a Moura Torta, foram os primeiros. Lembram apenas que sempre surgem novos personagens, sarau após sarau. E mesmo sobre o evento eles não têm respostas, algumas vezes acontecem, outras não. Alguns personagens sempre comparecem, outros aparecem esporadicamente. A verdade é que ninguém questiona nada.

Das frestas das persianas saem setas de tons noturnos de prateados, as paredes vibram músicas absorvidas ao longo dos anos e o ar exala um aroma de poesia completando o ambiente onde os "convidados" se reúnem e trocam idéias. É preciso alertar que nessas noites, a saleta se amplia ao infinito. E as cores, são definidas de acordo com os seus donos.

Sentadas na grande poltrona, agora envolta em cores romanticamente difusas, estão Elizabeth Bennet e Julieta, ambas lateadas por Mr. Darcy e o jovem Romeo. Em pé, Petruchio irritando sua Kate, sentados no chão, Ron Weasley e Hermione se sentem um tanto deslocados, e, encostado à parede Riobaldo com Otacília e um pouco afastada, Diadorim, todos atentos, enquanto o Analista de Bagé, com suas cores chapadas e o inseparável chimarrão discursa sobre sexo e companheirismo.

- "Agora é moda. Aqueles lá, estão discutindo a relação" comenta o inspetor Maigret com o sargento Lituma dos Andes, sobre aquela roda de casais. E aproveita o momento para parabenizá-lo pelo seu retorno em outra obra nova. Este muito tímido, apenas concorda e olha em volta, testemunhando a farra que uma turma vinda de Macondo liderado por José Buendía e o cigano Melquíades estão promovendo.

-"Uma invenção maluca, tenho certeza!" exclama o professor Robert Langdon, olhando diretamente para Maigret e Lituma, e aponta o dedo para a geringonça ao lado do cigano e Buendía, agora com alguns dos moradores do Carandirú, "Sem chance" e sua Lady Di, Desdete, Zico e Ezequiel em volta, formando um grupo bastante eclético e inusitado.

Perto da janela, Cass, a mulher mais linda da cidade, chama a atenção de boa parte dos presentes. Ela e as sereias da Odisséia, empoleiradas na mesa, altivas e alertas, estão rindo das historinhas das sereias de Andersen e acenando para as novatas sereias de Lilla. Estas, extasiadas com o que vêem, perguntam às novas amigas:

-"Como é possível?"

Ariel, a sereia de cabelos vermelhos, famosa pois também é artista de cinema responde:

- "Basta que alguém te escreva e que a página, a palavra esteja aqui, nesta sala. Antes eram somente personagens dos livros, mas o universo tem seus mistérios, fomos atualizados. Agora os que nunca se deitaram em folhas de papel, mas foram digitados e armazenados em memórias, postados em sites, blogs, em e-books também podem participar. Estão vendo aquele bando de crianças brincando com os Capitães da Areia?" apontando para umas oito crianças que lembram os personagens de Vidas Secas.

- "Eles também são personagens recentes como vocês" - E nesse instante um dos meninos, lá pelos seus treze, levanta os olhos e vê as sereias, Ariel acena e manda beijinho.

O sarau continua animado e até os botos, personagens de poemas, aparecem, mostrando como o encontro é democrático.

Quando escutam os primeiros sons dos pássaros, quando as cores mágicas diluem, e quando a sala encolhe, os personagens se despedem.

Seu Nacib puxa Gabriela que devolve o cachorrinho da dama Ana Serguêievna, acenando um adeus a Gúrov.

William Wilson faz uma espécie de continência para Dorian Gray, todos retornam para os seus respectivos livros, páginas, esmaecendo, desaparecendo... e no último instante, tomada de coragem, a mais nova das sereias de Lilla, agita os braços, chamando a atenção daquele menino que recebera o beijo assoprado de Ariel e pergunta:

- "Você volta?"

.

lilla wood
Enviado por lilla wood em 22/09/2013
Reeditado em 23/09/2013
Código do texto: T4492907
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.