O medo

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A cidade está silenciosa. No centro da avenida principal, para onde convergem as ruas arteriais, a vida exacerbada do dia cede à arrogância da noite, amortecendo o glamour da celeridade – agora, tudo parece turvo e o temor de atravessar a alameda torna o próximo passo sentença de ressignificação, umbral entre a vida e a morte.

Talvez não exista nenhuma anormalidade, mas tente compreender a mente conturbada daquele homem – sentado, ele possui a cabeça liquidificada, os olhos se esbulham e a sensação de pânico o torna incapaz de sentir a beleza da praça. A brisa suave lhe banha o rosto fervilhante, a dois graus Celsius, em plena Buenos Aires... O frio da rua não equilibra o calor daquela alma apavorada por desconhecido assombro.

O ar falta – ou parece rarear? As ruas, livres e arborizadas, tomam formas estranhas e tudo sufoca. As paredes estão ruindo – realidade ou sublimação da fantasia em próprio desfavor? Masoquismo, fuga, explosão de pressões internas e cobranças, válvula de escape? Houve acúmulos e os excessos exigem liberdade – a panela está quente; os ares efluem, esquentando as paredes do tempo que foram aspiradas. As narinas queimam, as mãos suam e a vontade irresistível provoca consistente efeito: o homem corre pelas ruas, sozinho, buscando fugir do inimigo que o persegue, amedrontando-o sem nenhum toque assimilável.

Chega ao hotel. Entra. Tenta banhar-se, mas a clausura o consome. Está ofegante. Os cabelos estão desarrumados; os olhos, mais atentos, descerraram as pálpebras e colapsaram. Abre a porta. Grita. Na solidão do cômodo, contíguo ao banheiro, deitado, com as duas mãos juntas, espremendo a cabeça, ele pensa estar enlouquecendo. Não há delírio – as paisagens lá fora, apesar de obliteradas pelas colunas da estrutura de concreto, são entendidas como tais... Uma centenária árvore que se impõe há dois Séculos murmura.

Da janela, voltando-se para a praça onde estivera não faz dez minutos, as alamedas, ruas, avenidas e travessas se transformam e se redefinem: Rua do Medo, Avenida da Esperança, Alameda do Pânico, Travessa Futuro... O passado se eterniza. O recordar-se sufoca. Por que tantos desvios de percurso se a vida se faz na imponderabilidade do tempo, das vaidades e dos sonhos?

A Rua do Medo está escura – uma pedra, jogada no poste ao lado do numeral setenta e sete, cerrou o tom alaranjado da luminária de sódio. A gradação acinzentada, quando do impacto da pedra na luz e dos estilhaços espaçados pelo chão, desviou o caminho de jovens que se abraçavam, felizes, saindo da Avenida Encanto. O desvio acabou por jogar o casal, inesperadamente, na Alameda do Pânico. E da janela, o homem, transferindo a própria dor, temeu pelo casale se embriagou de momentânea exultação. Tomado por bons pensamentos, a inconsciência altruísta o consumiu, ressurgindo a vontade de viver e ser feliz. As trevas se dissiparam – teriam existido em algum instante concreto, ou a mente humana tem o condão de nos libertar, podendo, também, aprisionar, quando estamos enfraquecidos pela força do passado?

O sangramento da alma aflita é singular momento de libertação e podemos morrer ao sangrar. O silenciar da alma anteciparia, deveras, o fim da pulsação arterial que alimenta a vida? Os espasmos hipovolêmicos, ao nos visitarem no tempo, animam os desânimos ou desanimam os ânimos. O sofrimento comprime. A angústia se adensa, mas, dentro daquele invólucro corpóreo, existe a esperança. Há consciência da mutabilidade. Nada se mantém indefinida e eternamente – nem a felicidade, nem o medo; a busca ou a fuga. O tempo se dilui; os assombros decantam e, aos poucos, ressurge sensação de instável estabilidade. Afinal, sangrar exige coragem e as pulsações do medo, atuando em nossas artérias, também.

Tenta adormecer. Deita-se. Desliga o abajur. Os resquícios da luz interior do quarto, transformada em breu, chegam-lhe ao íntimo e o torpor da mutação do cristalino se revela como desespero. Ele respira profundamente. Tenta acalmar-se, mas a sensação de instabilidade se mantém. Aquela alma está cega – onde haveria luz?

Tateia. Encontra a mochila. Abre-a. Em seco, dispensando as gotas de água que aliviariam o percurso do medicamento, engole, num só golpe, o calmante que trouxera. Nada de luz, nenhuma claridade... São cinco minutos de agonia. Ainda está vivo e a respiração, apesar de descompassada, persiste. Ele está vivo e parece delirar. As ideias vão se confundindo entre as lembranças da infância, os amores perdidos, os afetos conquistados e os sonhos ainda distantes. Os bons momentos vão se firmando, as melhores recordações vão surgindo numa miríade aconchegante. Adormece.

Amanhece. Ele olha pela janela. Refaz mentalmente o rumo tomado pelo casal de enamorados na noite anterior. Resolve descer. Ao verificar as placas de identificação percebe que cometera grande equívoco: o casal tinha partido, de mãos dadas, pela Avenida da Esperança.

Buenos Aires – Argentina, 23 de julho de 2012.

17h31min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 19/09/2013
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