Inspiração
Uma chuva fina caía, suave, como se fosse neve. Era um daqueles dias preguiçosos nos quais o tempo se comporta como as moedas de um comprador indeciso, analisando a melhor forma de gastá-las. E imersa nesse ambiente vagaroso, estava a casinha onde eu me localizava. Uma construção simples de feita basicamente de madeira. Porém, tinha aquele charme único típico dos objetos feitos a mão. Nunca cheguei a conhecer seu construtor, ou mesmo ouvir falar sobre ele. Mas mesmo assim era como se ele estivesse ali. Cada tábua estava impregnada por ele, como se aquela casa carregasse parte da sua alma ou espírito. Era possível ter uma idéia bastante nítida de como aquela pessoa deveria ter sido. Uma pessoa simples porém, atenta a detalhes, provavelmente carregando algo pesado na consciência, sim era possível sentir isso na casa também, um toque de carinho, uma pessoa um pouco bruta talvez ,solitária mas, que tinha muito amor.
Era exatamente por causa desse sentimento que tive ao entrar nesta casa que estou aqui hoje. Sinto algo que me inspira profundamente. Um sentimento que transcende vida e morte, algo muito difícil de se explicar. E foi essa casinha, perdida do mundo, que eu escolhi como meu recanto mais íntimo. Ela não tinha ,esteticamente, nada de especial. Era quadrada, o teto talvez fosse alto demais, dando uma sensação estranha de vertigem ao se olhar para cima. Ela possuía apenas dois cômodos: a sala e um quarto pequeno que tinha espaço para pouco mais de uma cama. Mas eu me sentia confortável como se estivesse em um palácio. Meu palácio. Um lugar onde eu podia me afastar dos problemas da vida cotidiana e de todas as frustrações e desamores que dela nascem. E assim eu o fazia.
Aquela não era minha casa de fato. Minha casa ficava no centro da cidade. No meio do mar de pessoas, um lugar que me fazia sentir um desconforto lancinante. Eu odiava aquilo, as pessoas parecendo sempre ocupadas, andando de um lado a outro sem dar propósito à própria existência. Durante a semana eu era uma dessas pessoas. Eu vivia como apenas mais uma formiga no formigueiro. Fazendo minha cota de trabalho diário a espera de receber os parcos espólios que ele trazia. Sobreviver, é isso que nós formigas fazemos, sobreviver. Mas durante os fins de semana eu retiro meu terno de formiga e venho a meu recanto. Venho traçar algumas palavras sobre um papel branco, esperando que elas me preencham em troca. Esses eram dias solitários, porém, recheados de significado, algo que me fazia sentir vivo.
Eu me sentei calmamente na única cadeira que ocupava a sala, e apoiei na mesa minhas folhas brancas,um pote de tinta eu uma pena. Fora mesa e cadeira havia apenas uma estante simples na sala, onde jazia um grupo de folhas brancas e uma urna de cerâmica. Tanto a mesa, a cadeira e a estante eram feitas de madeira, provavelmente construídas pela mesma pessoa que fizera a casa. Sendo assim delas também emanavam as mesmas emoções que a casa em si transmitia. Esse dia preguiçoso seria meu último neste recanto. Minha vida de formiga me chamou, e vou ser forçado a trocar de formigueiro. Não sei se encontrarei outro lugar como esse, ou mesmo se existe outro lugar como esse. Eu estava triste e todas as palavras que eu escrevia calmamente com minha pena, acabavam por conter parte dessa tristeza também. Eu estava sentindo algo como um leve pranto interno, suave como a chuva que caia lá fora.
Era como se separar de um mestre, um mentor. Era isso que aquela casa representava para mim. Toda vez que eu entrava nela eu sentia, sentia a força e o significado daquele lugar que, a primeira vista, não possuía nada de especial. E isso me inspirava a escrever. Queria escrever meus textos como o homem que construirá aquela casa. Impregnando cada canto, por mais esquecido e escuro que seja, com minha alma fazendo dele único. Era algo impressionante o que aquele lugar fazia comigo. Naquele dia eu estava especialmente melancólico, por minha mente passaram todas as pessoas que eu perdi. Aquelas que morreram, aquelas que simplesmente se afastaram e aquelas que eu afastei. Era como viver minha vida toda novamente. Mas mesmo assim no papel esses sentimentos ficavam confusos, e praticamente nada que eu escrevia ficava a meu gosto.
Começava a anoitecer. Então peguei uma vela que tinha guardada no quarto e a acendi, colocando-a sobre a mesa. A pequena chama da vela se movia indecisa de um lado para outro. Era um movimento hipnótico, eu não conseguia tirar meus olhos daquela simples vela. Eu me perdi novamente pensando em minha vida. A saudade que tinha do passado, a solidão do presente e a amargura que o futuro mostrava. Se eu vivesse minha vida novamente eu faria diferente? Conseguiria eu não afastar as pessoas que amei uma a uma? Era um pensamento triste, a saudade que eu sentia não era do tipo saudável como aquela que se sente por um momento especial, querendo sentir aquilo novamente. Era uma saudade de arrependimento, uma saudade dolorida. E em minha mente o filme da minha vida ainda passava. A única mulher que amei indo embora. Os sonhos de criança se esvaindo um a um. Os dias maçantes que vivo ultimamente. Era uma sinfonia desafinada e dolorosa de se ouvir.
Eu continuava com os olhos presos à vela. Comecei a pensar que, minha vida era como ela. Pequena e se esvaindo pouco apouco como a cera. Então na minha mente veio um pensamento. O pensamento crescia e tomava forma, enquanto eu observava a vela. Ele amadurecia e se misturava a outros. Eu estava cansado. Cansado de deixar a vida me viver. E continuava a observar a pequena vela, foram alguns minutos, talvez uma ou mais horas enquanto minha vida continuava a passar passo a passo em minha mente. Se eu vivesse minha vida novamente seria capaz de cometer menos erros? Capaz de não afastar aqueles que amo de mim, de viver melhor, ser melhor? A única mulher que amei indo embora. Meus pais. As lembranças da minha infância. Os dias de trabalho maçante que vivia atualmente. Me peguei imaginando eles de forma diferente, pensando em como eles seriam se tivesse feito escolhas diferentes, escolhas melhores talvez. Então olhando para a cera escorrendo pela haste da vela me veio uma inspiração súbita e consegui escrever a única página que foi de meu agrado:
“Mesmo que eu viva dezenas de vezes essa mesma vida, cometerei os mesmo erros. Trilharei os mesmos caminhos, amarei e odiarei da mesma forma. Carregando as mesmas dúvidas, as mesmas dores, arrependimentos e saudades. Pois eu sou como esta vela. Pois todos somos. Podemos começar parecidos, simples hastes de cera. Uns mais longos que outros talvez. Mas todos parecidos. E como esta vela queimamos nossa vida, com nossas escolhas e dores, amores e temores. E a cada momento que fazemos isso a cera escorre por nosso corpo esculpindo quem somos. Criando uma base que sustentará nosso ser. Eu sou a soma de meus erros e acertos, a soma das minhas escolhas. E eu escolho não me arrepender delas. Escolho viver como se todo o passado fosse uma preparação para o presente. E assim sendo a partir disso, tentarei esculpir algo belo, algo que de significado a minha vida, algo que me faça feliz.”
Quando terminei a última linha uma lágrima escorreu pela minha face. Não uma lágrima salgada de dor. Uma lágrima doce, doce como o mel. Uma lágrima de libertação. Então peguei a urna de cerâmica na estante, coloquei-a sobre a mesa e removi sua tampa. Em seu interior apenas cinzas, as cinzas que eram de certa forma parte de meu corpo. Aquelas palavras que escrevi estariam sempre comigo dali em diante. Peguei a folha e toquei sua ponta na chama da vela, e fiquei observando ela queimar lentamente. Coloquei as cinzas na urna e a fechei. Aquele não seria mais meu recanto. Meu mestre terminara de me ensinar tudo o que sabia. Abri a porta e sai na chuva enquanto as chamas da vela começavam a consumir o interior da casa como consumiu meus arrependimentos.