Consonância

Amanheceu.

A implacável escuridão de tão fria abortou este dia cinza. Sem qualquer hospitalidade tenho meus pés descalços correndo por um chão úmido e cortante, representando o cuidado do universo para com suas almas sem lar. Por tantas vezes pensei no frio que ocupa o lugar da vida quando esta se esvai. Pensei em folhas secas, que caem inconscientes das altas copas de árvores semimortas. Pensei em troncos quebrados em repouso sobre a terra úmida das florestas. Existe em tudo isso a possibilidade certa de uma imutabilidade existencial. Inevitavelmente, as coisas tendem a ficar onde estão até que o tempo as consuma de forma displicente. Algumas vezes pensei também na violência da água em sua corrida sem cessar rumo ao mar. Mas tenho deixado de pensar, afinal a vida é tão cíclica, exceto para nós, seres concebidos em lotes centenários. E tenho estado cansada ao pensar que cada manhã representa um novo movimento no ponteiro do tempo que tenho, ou daquele que tive. É preciso abstração já que a vida tem se mostrado substancialmente fria e objetiva, tão obstinada quanto a seu objetivo final. Enquanto empurro o frio para fora e tranco as janelas, acabo por me perguntar se existirá alguma maneira de personificar as sensações minimamente vivas e encontrar um berço morno para abrigá-las. A casa da alma está tão fria e pronta para ser abandonada nesse vazio universal de almas sem futuro. Enquanto isso, tenho no bolso um ou dois sorrisos, caso encontre o morador dos sonhos. Estarei acordada, aguardando até que minha espera neste ponto seja finda.